Sayona-San, uma enigmática japonesa, é actriz principal de um filme de confeção lusa em terras do Japão. O enredo desdobra-se simultaneamente no palco e na vida real. Sayona-San e a sua personagem Irochi-Ko, debatem-se entre o respeitoso cumprimento dos costumes ancestrais e uma paixão incontrolável pelo galã do filme, herói alado cujo hidroavião se despenhara no cais, e o operador de câmara do filme, o português Rui. A actriz mata-se no final, depois de incendiar as bobines do filme, incapaz de assumir na vida real a sua fatal paixão. A novela, publicada no Magazine Bertrand de maio de 1930, decalca a saga de Cio-Cio-San, a trágica Madame Butterfly de uma das óperas mais famosas de Puccini.
João Carlos (Ílhavo, 1899-Lisboa, 1960) ilustra aqui um texto de Celestino Gomes. Ou seja, ilustra-se a si próprio. Assinando com os apelidos Celestino Gomes foi poeta, prosador, ensaísta e divulgador científico, associado ao seu labor de médico. Assinando João Carlos foi pintor, ilustrador, xilogravador e entalhador. Iruchi-Ko é um concentrado poético e gráfico da paixão de João Carlos Celestino Gomes pela cultura oriental e revela-nos o caminho para as obras primorosas das duas décadas seguintes, como o Livro de Ester (1933), Cântico dos Cânticos (1942), Medicina na Literatura (1943) e Farsa dos Físicos ou Epigramas Médicos de Bocage (1945).
O traço sinuoso e preciso, a ausência de perspetiva e a ornamentação saturada superam o realismo e revelam a espiritualidade e o onirismo que foram todo um programa de arte e vida do ilustrador. Religioso e humanista, influenciado pelas gravuras do japonês Hokusai, pelos Primitivos de Quatrocentos, pela arte bizantina, o horror ao vazio de João Carlos construiu uma epopeia gráfica que poderia ter sido um outro retrato possível de Portugal, à margem do modernismo oficial da Política do Espírito de António Ferro e do Estado Novo.
Nota: as ilustrações foram restauradas digitalmente
Fontes:
João Carlos, por Américo Cortez Pinto, Lisboa, 1961
In Memoriam, Aveiro, 1962
João Carlos, Exposição Retrospectiva, SNI, 1964
blogdaruanove.blogs.sapo.pt
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Curioso. Faz lembrar (certamente de forma não acidental) os “XX Dessins” do Amadeo, quase vinte anos depois.
A conexão João Carlos-Amadeo é mais evidente ainda em obras posteriores, citadas no texto, e de que me ocuparei um dia destes.