À data da queda da monarquia, as mulheres constituíam a maioria do professorado, tentando debelar os catastróficos 75% de analfabetos da população portuguesa. As professoras republicanas praticavam o Ensino Livre, liberto da influência religiosa, tanto nos Centros Escolares Republicanos, como nos colégios particulares e nas escolas oficiais. Na elite das intelectuais republicanas pontuavam algumas pioneiras dos direitos da mulher e da literatura para a infância, como Ana de Castro Osório e Maria O’Neill (Lisboa, 1873-Oceano Atlântico*, 1932), poeta e jornalista, autora única de uma curiosa coleção de livros para crianças, publicada entre 1913 e 1924, a Biblioteca para a Infância. Nela se afadigou O’Neill a pregar as virtudes do estudo e da escola, e do amor à família, à coesão social e à Pátria, objetivos do ideal educativo republicano, em histórias que cruzavam as classes altas, letradas e possidentes, com uma amálgama de desvalidos de fortuna material e, eventualmente, de intelecto e vontade de vencer. Sem sinal de luta de classes, apenas com uma obssessiva caridade, exercida de cima para baixo, várias vezes O’Neill aponta a impossibilidade de igualização social. Os pobres podiam ascender, por triunfo do conhecimento e da vontade, mas sempre incapazes de igualar aos seus patronos.
O António é um pequeno muito inteligente e estudioso, apontado como exemplo a todos os rapazes da sua idade que frequentam a mesma escola. Quando se fala em atenção às explicações do professor, nenhum lhe leva a palma no modo por que sabe escutar, tirar apontamentos úteis com método e serenidade, demonstrando pelos seus actos e modos que o tempo que se gasta com ele não é perdido, antes pelo contrário. (N.º 5, Para Divertir)
A Biblioteca para a Infância apresentava vários géneros literários, mas insistia nos contos realistas, de enredos contemporâneos, focados na escola e na família. No quinto livro da série, Maria O’Neill chega a brincar com esta preferência, num diálogo entre a pequena Alfreda e a sua percetora, a inglesa Mary:
— ¿Para que anda a correr? ¿Não podia estar sentada a ler histórias?
— Podia, se gostasse das que tenho; mas não gosto. Só tenho os livros da Maria O’Neill e êsses não me agradam.
— ¿E porque é que não lhe agradam, faz favor de me dizer?
— Porque só conta cousas possiveis de acontecer e isso aborrece-me.
— ¿Então o que queria que ela contasse?
— ¡Eu sei lá! Histórias de fadas, de duendes, cousas maravilhosas.
A coleção, de dezassete volumes, publicada na editora lisboeta Parceria António Maria Pereira, contou com várias segundas e terceiras edições, que se estenderam até 1927. As capas e as ilustrações do miolo** têm a mão de Joaquim Guilherme Santos Silva que, com o pseudónimo Alonso (Lisboa, 1871- Sintra, 1948), foi um dos mais prolíficos ilustradores do seu tempo. Aos 20 anos estreou-se no portuense Charivari, um dos inúmeros jornais satíricos da época, iniciando uma extensa carreira de cartunista cruzando o espaço político da esquerda à direita, desde o monárquico Thalassa e o católico Novidades ao anarco-sindicalista Espectro, com destaque para a colaboração de mais de três décadas com o jornal Os Ridículos. As suas capas para a Biblioteca Para a Infância registavam uma liberdade formal quase impercetível, ofuscada pela exuberância arte-nova das ilustrações. Toda a gramática gráfica, da composição à tipografia, não se repete uma única vez ao longo das dezassete capas-cartaz evoluindo do sabor oitocentista ao modernismo geometrizante de Os Bonecos da Joaninha. As ilustrações do miolo, em sóbrio preto, no total de três centenas e meia, usam as convenções oitocentistas, como os primeiros planos a corpo inteiro das personagens, a modelação de volume e profundidade através do traço e as cercaduras geométricas em segundo plano que emolduram a ação. O preciosismo anatómico de Alonso, emparelha-o com outros dois seus contemporâneos, Alfredo Morais e Alberto de Sousa. Sem o dramatismo do primeiro e as meias tintas do segundo, Alonso e a sua linha clara deram a Maria O’Neill e à Biblioteca Para a Infância, uma elegância requintada, feita de belos vestidos e atavios, brinquedos e criadas, que ilustravam bem e disfarçavam mal os privilégios da caridosa elite republicana.
* Maria O’Neill morreu de doença a bordo do vapor alemão General Osório, numa viagem de regresso do Brasil, onde tinha ido para um ciclo de conferências sobre o Espiritismo. O seu corpo foi sepultado no mar.
** O número 17, de 1926, O Paraizo das Crianças, tem capa e ilustrações no miolo de Ricardo Santos. Apenas 11 dos 17 livros são ilustrados integralmente por Alonso. Nos outros encontramos uma amálgama de ilustrações pirateadas e até algumas fotografias.
Fontes
Pioneiras na Educação, Helena Costa Araújo. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2000
O Livro Infantojuvenil em Portugal Entre 1870 e 1940 – Uma Perspetiva Histórica, Raquel Patriarca
Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, Leonardo de Sá e António Dias de Deus, Lisboa: Edições Época de Ouro, 1999
Filed under: Alonso, Alonso, Biblioteca Para a Infância, Maria O'Neill