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histórias da ilustração portuguesa

Cuanhama

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Em 1915 a fronteira sul de Angola confinava com a África alemã. Desde o princípio do século que os germânicos instigavam os sobados indígenas a rebelarem-se contra a presença portuguesa, fornecendo-lhes material de guerra sofisticado e treino de combate. Em 10 de Dezembro de 1914 parte de Lisboa uma expedição que, chegada a Angola, se dividiu por três frentes de batalha, Cuamato, Cuanhama e Evale. A coluna do Cuanhama, no total de 5 mil homens, deu combate a dezenas de milhar dos prestigiados guerreiros Cuanhama, numa vastíssima e desconhecida região onde português algum jamais pousara o pé. O diário da marcha dolorosa e titânica da coluna portuguesa, flagelada pelos piolhos, pela sede e pela fome, e por uma mortífera e pioneira guerra de guerrilha industriada pelos alemães, foi publicado em 1959, na Lusíada, Revista Ilustrada de Cultura, de atormentada existência, com apenas 13 números espalhados por nove anos e colaborada por talentosos escritores e artistas que não morriam de amores pelo Estado Novo. História Inédita da Campanha do Cuanhama, o cruento relato do capitão Artur Luís Teixeira de Morais, é acompanhada por cinco ilustrações de Augusto Gomes (Matosinhos, 1910-1976), cenógrafo, pintor e ilustrador neorealista e activo participante das EGAPS, as contestatárias Exposições Gerais de Artes Plásticas. Gomes recorta os corpos mutilados no branco do papel, sem cenário envolvente que suavize a mortandade, traçando as carnes exangues, de musculatura geometrizada, abandonadas no chão, os membros e sexos mutilados, em registo gráfico raro na sua obra e no seu tempo. Se a figuração é eminentemente neorealista, a volumetria dos corpos heróicos lembra a estatuária magestosa do Estado-novo que Gomes replicou assumidamente noutras paragens ilustradas, em grattages publicadas nas Lendas de Portugal, compilação em fascículos colecionáveis de 1962. A dor e a morte de anónimos heróis foram tema caro ao humanismo de Augusto Gomes, cuja pintura se centrava no sofrimento das gentes trabalhadores do campo e do mar.

“A Pátria não nos conhece!”, bradava o capitão no final do relato. A recepção aos sobreviventes da expedição em Lisboa foi envergonhada e Teixeira de Morais lança-se numa arripiante diatribe contra a decadente e hipócrita Primeira República e a classe política, que poupavam no equipamento e logística do seu exército e esbanjavam dinheiro “ameigando coristas no vosso baboso canto do cisne”.

Cuanhama

The southern border of Angola ran alongside what was known as German Africa in 1915, and since the start of the century Germany had been inciting the local inhabitants to rise up against the Portuguese and providing them with sophisticated military weaponry and combat training. On 10 December 1914, an expedition left Lisbon and arrived in Angola where it was divided into the Cuamato, Cuanhama and Evale fronts. The Cuanhama military column, which was made up of a total of 5 thousand men, fought dozens of thousands of imposing Cuanhama warriors in a vast unknown region where no Portuguese had ever trod before. A dairy of the gruelling, epic march of Portuguese soldiers plagued by lice, hunger, thirst as well as the devastating guerrilla warfare pioneered and engineered by the Germans, was published in 1959. It came out in Lusíada, Revista Ilustrada de Cultura, whose very troubled existence only lasted 13 editions spread out in nine years. But it received contributions from talented writers and artists with no love for Salazar’s New State. História Inédita da Campanha do Cuanhama [The Remarkable Story of the Cuanhama Campaign] is an account of the gory events written by Captain Artur Luís Teixeira de Morais and has five illustrations by Augusto Gomes (Matosinhos, 1910-1976), set designer, neo-realist painter and illustrator who took an active part in the anti-establishment EGAPS (general visual arts exhibitions). Gomes draws the outlines of mutilated bodies on white sheet of paper without anything around them to alleviate the agony of death. With a graphic style rare in his work and for his time, he depicts bleeding flesh and geometric musculature of corpses as they lie abandoned on the ground without limbs or genitals. While his figuration is eminently neo-realist, the volumetric drawing of his heroes’ bodies recall the New State’s grandiose statues that Gomes consciously copied in other works, such as his grattage illustrations for Lendas de Portugal, a compilation that came out in instalments in 1962. The suffering and death of these nameless heroes was a subject close to Augusto Gomes’ humanism and his painting focused on the misery of working people in the countryside and at sea.

A Pátria não nos conhece!” [Our Fatherland knows us not!”] exclaimed Captain Teixeira de Morais at the end of his account. The survivors of the expedition were given an embarrassed welcome when they returned to Lisbon, and the captain launched into a terrifying diatribe against a decadent and hypocritical First Republic and its political class that saved on the army’s equipment and logistics and squandered money on “making friends with the chorus girls in their nauseating swan’s song.”

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As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored
Fontes Sources
Um Tempo e Um Lugar, dos Anos Quarenta aos Anos Sessenta – Dez Exposições de Artes Plásticas, catálogo. Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 2005

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Heróis a preto e branco

Lenda da gruta de Camões, 1966

As dramáticas grattages de Augusto Gomes (Matosinhos, 1910-1976) são verdadeiros grupos escultóricos. Os gigantes humanos, de pose heróica, membros robustos e rostos sofredores, são manifestação da escola neo-realista a que o autor estava vinculado desde os anos 50, e numa pintura de acentuado teor humanista e abordagem de temas sociais. Paradoxalmente, a modelação dos panejamentos e a composição podem filiar-se na impressionante estatuária do Estado Novo que se constituíu paradigma a partir dos anos quarenta, em escultores como Canto da Maia e Leopoldo de Almeida. A técnica expressiva do grattage serve bem o pendor historicista e a apologia da fé e identidade pátria que nortearam esta edição das Lendas de Portugal, compiladas por Gentil Marques para a Editorial Universus, em 1962. A obra saíu em fascículos, durante quatro anos, com confeção apurada e um who is who da ilustração editorial portuguesa, como era comum na época para a edição de colecionáveis. A eficácia das imagens não será alheia à mestria de Augusto Gomes na pintura mural, xilografia e vitral, bem como ao seu papel de cenógrafo e figurinista no Teatro Experimental do Porto, nos anos de 1953 a 58. Estas qualidades estavam presentes, já 25 anos antes, numa belíssima série de capas ilustradas a cores para ficções históricas do escritor Arnaldo Gama, e com a qual podemos estabelecer afinidades temáticas e estilísticas.

 

Lenda da Porta da Traição, 1963

 

Lenda do belo Suldório, 1963

 

Lenda da que mal pica, 1962

 

Lenda do massacre de Bencatel, 1963

 

Lenda da gruta de Camões, 1966


 


 


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