Bons tempos aqueles, em que a Crise era um fenómeno de natureza sobrenatural e maléfica. O diabo soprava as ondas de choque do crash bolsista e acompanhava o passo de ganso dos fascismos europeus a caminho de uma nova guerra mundial. Bernardo Marques (Silves, 1898-Lisboa, 1962) desenhou este auto-anúncio para o Anuário Comercial de Portugal de 1932, que pretendia combater a crise a tiro, exortando a estimada clientela do Anuário a fazer contas bem feitas ao retorno da sua estratégia de comunicação. Lição sem proveito para as revistas e jornais contemporâneos definhando à míngua de publicidade comercial, que cínicos estrategas de marketing deslocalizaram para mais rentáveis destinos. Marques aplicou, tal como muitos dos seus colegas, o seu traço elegante em inúmeros anúncios comerciais. A função alimentar destes trabalhos era relevante e a qualificação da publicidade pelos melhores artistas gráficos da época seria prioridade do regime ao longo das décadas seguintes, fomentada pelas Campanhas do Bom Gosto do SNI. A ilustração não é particularmente notável no contexto da obra do ilustrador, a não ser pela sua curiosa atualidade. Um folclórico mafarrico de crista moicana, dentuça arreganhada e rabo de arpão está prestes a entregar a alma ao Criador, subjugado por um ariano caçador de impecável fatiota bávara, o que revela a visão premonitória do artista. É uma ilustração cartunesca, graça ampliada pela negritude do mostrengo, a provar o racismo das elites culturais da época, e por uma inscrição que mima o tubo digestivo, de um buraco a outro da criatura. Sabemos hoje que a culpa da crise não é do diabo, é nossa. A propósito, o Almanaque Silva penitencia-se pela publicidade pelintra que infesta os seus posts, prometendo eliminá-la em breve, não à bala, mas pelo prosaico pagamento do aluguer à WordPress. Não há almoços grátis, caro leitor.
Gone are the days when a Crisis was something wicked and supernatural. The devil blew and waves of a crashing stock market rose. He walked alongside European fascists as they goose-stepped their way towards another world war. Bernardo Marques (Silves, 1898-Lisboa, 1962) created this self-promoting publicity for the 1932 Anuário Comercial de Portugal [Business Yearbook of Portugal]. Its aim was to fight the crisis with bullets and it urged its esteemed clientele to do their accounts properly and get a return from this communication strategy. A lesson left unheeded for contemporary magazines and newspapers suffering from the lack of commercial advertisements that cynical marketing strategists had moved to more money-spinning destinations. Like many of his colleagues, Marques used an elegant drawing style in numerous commercial advertisements. That the purpose of these works was to promote foodstuff was relevant to the artists. The quality of publicity by the best graphic artists was an important concern for the New State in the next decades and SNI (the state’s propaganda bureau) encouraged Campanhas do Bom Gosto [Good Taste Campaigns]. Apart from its topical interest, the illustration here is not particularly remarkable considering his other work. A devil with a Mohican haircut, bared teeth and tail with an arrow tip is just about to give his soul up to the Creator and lies vanquished by a very white hunter in immaculate Bavarian attire, which shows the artist’s prophetic vision. It’s a cartoon-like illustration made even funnier because of the monster’s blackness, proof of the racism among the cultural elites of the time, as well as the writing which resembles a digestive tract going from one end of the creature to the other. Nowadays we know that the crisis is not the devil’s fault, it’s ours.
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