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histórias da ilustração portuguesa

O mau gosto de Elisa

“Compete aos organismos de propaganda turística impedir que se publiquem postais de mau gôsto, como os que foram aqui riscados.”

Com esta frase assassina, publicava a revista Panorama n.º 10 de agosto de 1942 mais uma crónica da sua Campanha do Bom Gosto. Tapumes, montras e publicidade comercial eram alvos preferenciais para a cruzada contra o “mau gosto” nas artes visuais e gráficas nacionais. Revista de propaganda do SNI, empenhada em formatar a indústria do Turismo, a Panorama não podia ficar insensível a um dos meios de maior circulação e promoção turística, o postal ilustrado. Vários exemplos, desde paisagens fotográficas humanizadas a tipos populares ilustrados eram traçados a cruz negra e apontados como exemplos de “qualidade miserável”. Sem ser nomeada, a principal vítima era Elisa Bermudez Felismino (1903-?), em duas cenas de folclore galante. De Elisa pouco se sabe. Aluna do pintor académico Veloso Salgado, foi professora de pintura, especialista em retrato feminino e a sua obra ficou disseminada por variadas coleções públicas e privadas. Qual era o pecado de Elisa? Não parecia ser o desenho, descritivo e algo naif, mas próximo do estilizado traço da segunda geração modernista, nem o naturalismo simplista das cores…

O pecado de Elisa era o explícito erotismo destes pares que se cruzam nos campos e nas ruas, exuberantemente ataviados. A anatomia escultural das mulheres, as poses provocantes e a exibição dos trajes de gala como atributos sexuais, refletiam uma visão básica da guerra de sexos que a inteletualidade da Política do Espírito de António Ferro não tolerava. Em duas séries de 24 postais, Elisa repetiu cenários e tipos populares consagrados da ruralidade portuguesa e, na série Costumes Portuguezes, os encontros amorosos eram abrilhantados por quadras rimadas, ora românticas ora brejeiras, como a inscrita no par amoroso dedicado às festas populares de Lisboa:

Se andas para me enganar / Tira d’ahi o sentido; /Muito cão me tem ladrado, / Mas nenhum me tem mordido.

No seu afã pedagógico, a Panorama pretendia dar bons exemplos. Cercando o marinheiro e a cocotte de Elisa estão dois postais de Paulo Ferreira, artista apreciado por António Ferro. Ilustrador de muitas obras sobre usos e costumes tradicionais portugueses, Ferreira foi também cenógrafo e figurinista dos bailados folclóricos da Companhia do Verde Gaio, outra criação de Ferro. Uma das peças mais célebres, Muro do Derrete, versa o mesmo tema (derrete=namoro), mas tanto as coreografias estilizadas do Verde Gaio como os bonecos dos postais de Paulo Ferreira, que mais parecem cerâmicas de Extremoz, cumpriam a iconografia assexuada do mundo rural idealizado por Ferro. O mau gosto de Elisa foi retratar a alegria e a crueldade das paixões humanas.

Elisa’s bad taste

‘It’s up to the tourism propaganda board to prevent postcards in bad taste, such as these marked with a black cross, from being published.’

On this murderous note, the Good Taste Campaign brought out another of their columns in issue No 10 of the Panorama magazine on 10 August 1942. Hoardings, shop windows and commercial publicity were the favourite targets in their crusade against ‘bad taste’ in Portugal’s visual and graphic arts. Panorama was published by SNI (the Portuguese regime’s propaganda office), which was very keen to shape Portugal’s tourism industry and knew it couldn’t afford to ignore one of the best means of marketing and promoting tourism – the illustrated postcard. Examples of what they considered ‘terrible taste’ ranged from photographs of humanised landscapes to popular illustrated types and were marked with thick black crosses.Without actually being named, the main victim was Elisa Bermudez Felismino (1902-?) in two pictures of stylishly gallant folkloric themes. Little is known about her. She had studied with the academic painter, Veloso Salgado, and was an art teacher herself. She specialised in women portraits and works of hers were in various public and private collections. So how had Elisa sinned? Surely not because of her illustrative and somewhat naïf drawings – not so unlike the stylised drawings of modernism’s second generation, nor the naturalism of her simple colours…  

Elisa’s sin was the explicit eroticism of the dashingly attired couples in fields and streets. Women displaying their sculptural anatomy in provocative poses and wearing their costumes as if these were sexual attributes seemed a rudimentary view of the war of the sexes and was intolerable to intellectuals in the Política do Espírito [Politics of Spirit] as devised by António Ferro, head of the regime’s propaganda office, which regimented artistic production in Portugal. In two sets of 24 postcards, Elisa depicted the same traditional settings and rustic types, while in her series Costumes Portuguezes [Portuguese Customs], romantic encounters gain a certain sparkle with their four lines of tender or playful verse, like the poem with the amorous couple during Lisbon’s June festivities:

If you’re thinking of deceiving me / Just give this a thought: / Many dogs have barked at me / But none has ever bitten me.

In their pedagogic zeal, Panorama wanted to provide good examples. Alongside Elisa’s postcard of the sailor and the cocotte, there are two by Paulo Ferreira, an illustrator and decorator admired by António Ferro. Ferreira did a great many illustrations of traditional Portuguese habits and customs, and also designed the sets and costumes for Verde Gaio, a folk dance company that was another of António Ferro’s creations. One of their best known pieces, Muro do Derrete [Wall of Courtship] is on the same theme, but the stylised choreography of Verde Gaio and the illustrations in Paulo Ferreira’s postcards, which look more like Estremoz ceramics, adhere to the sexless imagery of Ferro’s idealised rural world. Elisa’s bad taste was in showing the joy and cruelty of passionate love.

Bibliografia

Verde Gaio, uma Companhia Portuguesa de Bailado (1940-1950), texto de Paulo Ferreira, Museu Nacional do Teatro, 2000

Dicionário de Pintores e escultores portugueses, Fernando de Pamplona, 3.ª edição, 1991

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Os bons costumes portugueses

Costumes Portugueses, il. desc., ed. Papelaria V.ª Marques, Lisboa, 1936

Os correios portugueses emitiram o primeiro bilhete postal em 1878 e os primeiros ilustrados em 1894, no V Centenário do Nascimento do Infante D. Henrique e em 1901 há notícia de  uma série com costumes, monumentos e paisagens de Coimbra, editados por Albino Caetano. As duas séries de Alberto Souza, (1880-1961), a 5.ª série de Lisboa e as paisagens da 3.ª, são do princípio do século. Com as suas cores acinzentadas e uma virtuosa impressão litográfica, são um tesouro para colecionadores. Continuando a tradição oitocentista de representação do pitoresco em gravuras e litografias avulsas, as séries de costumes regionais cedo se concertaram com a organização política do território. Lisboa, a grande metrópole, constituiu-se como tema próprio desde muito cedo, como a curiosa colecção editada e desenhada por Angelo N. Pons caricaturando tipos citadinos, em 1904.

Os Ballets Russes de Diaghilev, que se exibiram em Lisboa em 1917 e 18, marcaram profundamente a primeira geração modernista portuguesa. E reavivaram a chama do imaginário popular rural. O programa estético modernista privilegiava o progresso urbano e a classe média mas não resistiu muito tempo à indiferença geral. A mulher da hortaliça* regressava, nos finais de vinte, mais estilizada nas capas da revista Civilização, mais naturalista nas da Ilustração, ambas cumprindo o ideário do nascente Estado Novo: exaltar a identidade lusa e a pureza do mundo rural.

Typos Populares de Lisboa – 5.º Série, il. Alberto Souza, ed. A Editora, 1904

Portugal – Typos das Ruas, il. e ed. Angelo N. Pons, 1904

Províncias de Portugal, il. Alfredo Morais, ed. António Vieira, Lda., Lisboa, s.d.

Costumes Portugueses, il. Alfredo Morais, ed. G&F, Lisboa, 1940

Costumes Portugueses, il. desc., ed. Papelaria V.ª Marques, Lisboa, 1936

Il. Elisa B. Felismino, ed. MCL, Lisboa, s.d.

Il. Cesar Abbott, ed. Centro de Novidades, Porto, 1942

Costumes Portugueses, Série B, il. Alberto Souza, ed. CTT, 1941

Costumes Regionais Portugueses, il. desc., ed. desc., 1939

O bilhete postal de costumes dos anos 20 a 40 resiste ao acerto com o Modernismo esteticizado de Bernardo Marques, Jorge Barradas ou Roberto Nobre, e fica-se pelo naturalismo, muito graças à prolífica carreira de Alberto Souza. A formidável equipa de modernistas portugueses ao serviço da Política do Espírito de António Ferro não teve oportunidade de brilhar no bilhete postal. A exceção é uma notável coleção de 12 postais de Piló (Manuel Piló, Lisboa 1905-1988), na década de trinta e onde a depuração gráfica se aproxima dos cânones construtivistas dos anos 20. Para o Neo-realismo, incluído na terceira geração modernista, coreografar o pitoresco das classes trabalhadoras estava fora do programa, apesar das sugestivas ceifeiras de um Pavia ou de um Cipriano Dourado.

Emilio Freixas (1899-1976), glória da banda desenhada espanhola, revela uma mudança apreciável numa série criada para a editora Ibis, já na década de 60. A ruralidade perde relevância na crescente urbanização do país e consolida-se o turismo de massas: a série inclui várias cenas de touradas para os postais do Ribatejo. Ao chegar aos anos 70, o bilhete postal de costumes ilustrados já não se levava a sério. Eugénio Silva (Barreiro, 1937), parodiava os tipos regionais adoptando o pop delicodoce da época e Zé Penicheiro (Arganil, 1921) ilustrou a Ria de Aveiro e a Figueira da Foz, nos anos de 73 e 74, no contexto da sua auto-denominada Caricatura em Volume. A  fotografia tornou-se totalitária e os postais, em kitsch technicolor, abasteciam hordas de turistas apressados.

Costumes Portugueses, il. Piló, ed. António Vieira, Lisboa, s.d.

Il. Laura Costa, ed. Oliva (máquina de costura), 1957

Il. D. Fuas, ed. desc., s.d.

Il. desc., ed. desc., s.d.

Portugal e Suas Maravilhas, il. João Alberto, ed. MD, Lisboa, s.d.

Costumes de Portugal, il. desc., ed. AVL, Lisboa, s.d.

Portugal em Silhuetas, il. desc., ed. António Vieira, Lda., Lisboa, s.d.

Il. Emilio Freixas, ed. Ibis, s.d.

Trajes Regionais Portugueses, il. Eugénio Silva, ed. Âncora, Lisboa, s.d.

Il. Zé Penicheiro, ed. Comissão Nacional de Turismo, Aveiro, 1973

A ausência de créditos de edição e autoria artística é frequente. As datas das séries aqui representadas referem-se a carimbos dos correios em postais circulados. Podem não coincidir com as datas de publicação inicial.

* Referência à frase de Christiano Cruz, em 1913, contra o academismo naturalista, personificado por Alberto Souza.

Fontes: Ilustradores Portugueses no Bilhete Postal, Artemágica Editores, 2003

O Povo de Lisboa, catálogo, Câmara Municipal de Lisboa, 1979

Os Postais da Primeira República, António Ventura, Tinta da China, 2010

http://postaisilustrados.blogspot.com

http://www.hernanimatos.com


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