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histórias da ilustração portuguesa

Viva a República!

São dois livros ferozes, implacáveis com a doutrina da Igreja e com um ditador principiante, o falso austríaco, a caminho de se tornar um pesadelo planetário. O terceiro é uma ambígua análise da Rússia bolchevista, longe da inflamada diatribe dos dois primeiros. Foram publicados em 1933 pela Editorial República, ligada ao jornal com o mesmo nome, fundado em 1911 e esforçado resistente à ditadura salazarista. Foram provavelmente um dos últimos sinais do cariz socialista e anticlerical da Primeira República, inoportuna para o Estado Novo nascido nesse mesmo ano de 33 com uma nova Constituição, nova polícia política, a PVDE, e a Censura Prévia. A coleção tem as primeiras capas para livros de Fernando Bento (Lisboa, 1910-1996), aquele que seria uma referência maior da banda desenhada portuguesa, ainda longe do seu virtuoso traço maneirista e do seu vital papel na era dourada das revistas e suplementos infantis de quadradinhos, primeiro no Pim-Pam-Pum! e no Diabrete, ambos a partir de 1941, depois no Cavaleiro Andante desde 1952. Bento tinha uma ligação estreita com o universo do jornal República. Foi na Secção Infantil do diário que publicou, em 1938, as suas primeiras histórias em banda desenhada. Para esta inflamada coleção da Editorial República, desenhou ilustrações de expressiva e rara síntese gráfica, quando na época pontuavam virtuosos capistas como Barradas, Marques, Nobre ou o eterno Stuart. Vermelhos, amarelos e pretos assim, puros e duros, só os voltaríamos a ver quarenta e dois anos depois, na propaganda do Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariados, vulgo MRPP, nos anos quentes do PREC.


As ilustrações foram restauradas digitalmente. Só as duas primeiras estão assinadas por Fernando Bento. A terceira é uma benévola atribuição minha.

Fontes

E Tudo Fernando Bento Sonhou, João Paulo Paiva Boléo, CNBDI – Câmara Municipal da Amadora, 2011

Fernando Bento, uma Ilha de Tesouros, João Paulo Cotrim, António Dias de Deus e Leonardo de Sá, Bedeteca de Lisboa, 1998

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Lá vamos cantando e rindo

A inquietante perspetiva de uma Espanha comunista em resultado da Guerra Civil e o fascínio da direita extremista portuguesa pelas ditaduras italiana e alemã forçaram Salazar à criação de organizações paramilitares como a Legião e a Mocidade Portuguesa em 1936. Esta última decidia-se a moldar os infantes portugueses aos valores nacionais e combater o internacionalismo bolchevista. Tratava-se de saturar a cabeça de doutrina e o corpo de exercício, até para evitar os malefícios do onanismo (práticas genésicas, como se dizia na altura). Avesso a extremismos, o ditador controla como pode estas problemáticas organizações, nomeando chefias da sua confiança. O principal doutrinador da MP, e mais tarde seu comissário geral, Marcelo Caetano, viria a ser o delfim e sucessor de Salazar. Em 1937, nascia a Mocidade Portuguesa Feminina, “sentinelas da alma de Portugal”, que enquadraria as suas filiadas no seio do lar e da família, oportuna retaguarda dos valorosos guerreiros da congénere masculina. A farda das MPs era peça fundamental na disciplina coletiva e na encenação de desfiles e paradas. As MPs dividiam-se em Lusitos/Lusitas, Infantes, Vanguardistas e Cadetes/Lusas, em categorias dos 7 aos 25 anos, cada uma com farda própria. A representação gráfica das MPs foi evoluindo ao sabor do seu papel político e social e do grafismo dos ilustradores de várias gerações. Nem o velhinho Alfredo Moraes (na altura, já com 65 anos) escapou à chamada, ilustrando os garbosos mancebos, logo em 1937, para um Livro de Leitura dos Liceus.

Portugal é grande, Livro de Leitura para o 1.º Ciclo dos Liceus, ilustração de Alfredo Moraes, Livraria Popular de Francisco Franco, 1937

Livro de Leitura para a 4.ª Classe do Ensino Primário, ilustração de Fernando Bento, Livraria Avis, Porto, s.d.

La jeunesse Portugaise à L’École, I.ere et II.e année, ilustração de Lino António, Livraria Sá da Costa Editora, 1939

O alistamento nas Mocidades era obrigatório dos 7 aos 14 anos e as suas actividades enquadradas a partir da escola. Naturalmente, os manuais escolares dos anos trinta a cinquenta refletiram esta presença obssessiva da MP, incluindo o diploma do Ensino Primário Elementar. Num curioso livro de Francês de 1939, Lino António ilustra com bonomia petizes orgulhosos das suas fardas por entre páginas carregadas de ideologia estado-novista. Os efémeros cadernos escolares de escrever e contar usaram abertamente a iconografia da MP nas suas capas de papéis baratos geralmente impressas a uma cor e sem menção de autor. Um dos mais curiosos talvez seja o do caderno Lusitos/Lusitas, onde compactas filas de miúdos rigorosamente iguais fazem lembrar um inquietante Mundo Novo ariano. Na literatura para a infância, as MPs assumiam a gesta histórica do país, somando-se à reconquista medieval e à epopeia dos Descobrimentos. No livro História de Portugal para Meninos Preguiçosos de Olavo D’Eça Leal (o menino preguiçoso era o filho do autor, Paulo Guilherme, reprovado em História mas futuro “doutor” em Ilustração e Design), a ilustração final, de Manoel Lapa, é um happy end, com as organizações irmãs, Mocidade e Legião, garantindo o devir português.

Caderno escolar, frente e verso, s.d.

Redacções, 4.ª Classe e Admissão aos Liceus, Livraria Popular de Francisco Franco, s.d.

A este devir vanguardista não foram insensíveis os ilustradores modernistas. Já em 1938, num opúsculo de Silva Tavares, Almada Negreiros desenhava uma juventude heróica e triunfal. Mas o esteticismo modernista cedeu o lugar à juventude belicista da década seguinte, com a escalada da Segunda Guerra Mundial, bem explícita na abundante produção gráfica de Júlio Gil, ele próprio destacado dirigente da organização. O Jornal da MP exemplifica o período de maior extremismo ideológico e doutrinação política. É tempo da pose firme e das baionetas caladas dissipando a treva bolchevista. Em Maio de 1943, temendo a invasão de inimigos ou aliados, os filiados da MP faziam caricatas rondas nos castelos e monumentos nacionais, gritando senhas de reconhecimento. O desfecho do conflito e a reorganização política e social sequente esvaziaram a importância da MP como bastião do regime. Gradualmente perdeu o seu cariz militarista e patriótico acabando na inofensiva organização de tempos livres, ao jeito dos Escuteiros, até à extinção natural em 1974.

Roteiro da Mocidade do Império, Silva Tavares, ilustração de Almada Negreiros, Agência Geral das Colónias, 1938

O canto da Mocidade, texto de Odette de Saint-Maurice, ilustrações de Mário Costa, Empresa Nacional de Publicidade, 1938

História de portugal para meninos preguiçosos, Olavo D’Eça Leal, ilustrações de Manuel Lapa, Livraria Tavares Martins, 1943

Tronco em flor, Joäo Carlos Beckert de Assunção, ilustrações de Júlio Gil, Mocidade Portuguesa, 1944, original, guache sobre papel

Jornal da MP, n.º 40, 11-XI-1944, ilustração de Júlio Gil

O valor moral da Educação Física, Alberto Feliciano Marques Pereira, ilustrações de Álvaro Duarte de Almeida e Eduardo Teixeira Coelho, 1949

Fontes

Mocidade portuguesa I [Masculina] e Mocidade Portuguesa II [Feminina], texto de Manuel A. Ribeiro Rodrigues, ilustração de Carlos Alberto Santos, editora Destarte, 2003.

Portugal Século XX – Crónica em imagens 1930-1940, 1940-1950, Joaquim Vieira, Círculo dos Leitores, 2000

Mocidade Portuguesa, Joaquim Vieira, A Esfera dos Livros, 2008

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