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histórias da ilustração portuguesa

Gaticanea

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Gravura que acompanha o frontispício do livro

Dos Gatos, e dos Cães a bruta Guerra,
Que as partes inquietou de toda a terra,
se o meu engenho humilde pode tanto
D’Estro novo ferido alegre canto.

Glosando as duas primeiras estrofes dos Lusíadas, João Jorge de Carvalho inicia o seu «poema heroi-comico em quatro cantos, escripto em versos hendecasyllabos pareados, e no gosto pouco mais ou menos da Batrachomyomachia attribuida a Homero, não é de todo destituido de merito, na opinião de criticos competentes, e denuncia em seu auctor tal qual ingenho e vêa poetica. A prova de que agradou ao publico é, terem-se d’elle feito não menos de tres edições no lapso de cincoenta annos». Gaticanea tem a sua primeira edição em 1781, em pleno reinado da primeira rainha portuguesa, D. Maria I. Considerado uma alegoria sobre as intrigas da corte, Gaticanea, um neologismo de sabor alatinado, relata incríveis acontecimentos, desenrolados na vila de Mafra, que têm o desfecho numa apocalíptica batalha entre cães e gatos. Filha primogénita de D. José I, Maria foi aclamada rainha em maio de 1777. Por sofrer de doença mental foi afastada da governação em 1792, tendo o seu filho D. João tomado o governo do país, em nome da mãe até 1799, ano em que passou a governar em seu próprio nome com o título de Príncipe Regente. O clima político era tumultuoso. Apesar dos avanços na política económica e cultural, Maria governava um império em acelerada decadência e a animosidade entre a família real e o Secretário de Estado do Reino refletiam o desencontro histórico entre o absolutismo Ancien Régime da rainha e o despotismo esclarecido do Marquês de Pombal. De Gaticanea não viria grande mal à nobreza ou à Santa Madre Igreja, já que passou sem percalço pela Real Mesa Censória, obra do dito marquês, que retirou ao Tribunal do Santo Ofício o poder de censurar os livros publicados no Reino.

O enredo do livro passa-se à volta de Mafra e do seu descomunal convento, obra e símbolo do absolutismo magnânimo do rei D. João V. As 126 páginas da obra são abrilhantadas com três gravuras a buril em metal, duas delas em extra texto, assinadas por Godinho, personagem de que o Almanaque não tem mais notícia. Na primeira ilustração, que acompanha na página par o frontispício, um arauto celestial anuncia o triunfo de Maluco, o líder canino, sobre a infame gataria, tendo como cenário o Vale de Mafra. A segunda gravura relata o incidente que dá origem à brutal guerra: acicatado pela fome, o cão Carroça, num raide às cozinhas do Convento de Mafra, enfrenta-se com o gato Ministro, que andando ao mesmo, lhe trinca o espinhaço e o orgulho. A terceira gravura, a maior, relata a terrível batalha onde «De Gatos mortos cem milhões se viam,/ Entre os quais muitos Cães também jaziam, /Que por mais que valentes se mostraram,/ Vinte e cinco milhões ali pagaram», numa panorâmica da Real Praça da Vila de Mafra, onde o imponente convento puxa mais pelo estilete do artista do que a bicharada vinda dos quatro cantos do Mundo. Se a manufatura das imagens não tem grandes primores, e a anatomia humana e animal são bastante canhestras, as ilustrações de Gaticanea e os seus exuberantes desdobráveis de três e quatro laudas são uma refrescante alternativa aos hieráticos retratos e às alegorias mitológicas que saturavam os livros da época. Gaticanea seria reeditado em 1817, ainda no reinado de D. João VI, e novamente em 1828 e 1846.

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Segunda gravura com a zaragata entre Carroça e Ministro nas cozinhas do Convento

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Terceira gravura com a batalha na Real Praça da Vila de Mafra

3 — pormenor

Pormenor da terceira gravura

Fontes
http://www.castroesilva.com/store/sku/0911LM038/gaticanea-ou-cruelissima-guerra-entre-os-caes-e-os-gatos-decidida-em-huma-sanguinolenta-batalha-na-grande-praca-da-real-villa-de-mafra

A primeira citação do post pertence ao Dicionário Bibliográfico Português, de  Inocêncio Francisco da Silva.

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