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histórias da ilustração portuguesa

Espanto e horror


A magnitude do Terramoto de Lisboa de 1755 foi notícia assombrosa nas capitais europeias. Se causas naturais foram também invocadas, a maioria dos registos cedeu ao sobrenatural, obra de um Deus omnipotente e vingativo, castigando a cidade pecadora. Que tenha escolhido um dia a si dedicado, o feriado de Todos os Santos, apenas duplica o valor do exemplo. Lisboa, a capital suja, beata e iletrada de um decadente império, que nem mesmo o génio do Marquês de Pombal conseguiu reformar, merecia. Em texto alusivo aos 250 anos do Terramoto de Lisboa, a revista LER, da Fundação Círculo de Leitores, no derradeiro número de uma longa e prestigiada primeira série, comentou os livros, ensaios e cartas que nos legaram sobre o assunto, entre outros, cinco dos mais brilhantes vultos do Iluminismo europeu, Voltaire, Rousseau, Diderot, Kant e Goethe. Para ilustrar a peça pediam-se retratos em página inteira, de forte intensidade dramática, em vez da ilustração óbvia dos efeitos do cataclismo.

A disciplina do retrato nunca foi muito persistente na ilustração portuguesa. A compulsão para a narrativa, mesmo metafórica, e a falta de disciplina têm minado os princípios para uma produção que se quer longe de um verismo académico sempre à espreita ou da pura e simples caricatura que ilustração já não será. Gonçalo Pena (Lisboa, 1967) excelente ilustrador editorial dos anos 90 e primeiros anos da década seguinte, teve larga obra publicada no semanário O Independente e na revista Egoísta. O seu trabalho, de grande densidade gráfica e matérica, cita frequentemente a tradição e história eruditas das artes plásticas, da música e da literatura. Pena pintou os cinco personagens a acrílico em generosas folhas de papel A2, na tradição do retrato a óleo ocidental, em pinceladas liberais que traçam hipotéticos rostos sem fidelidade à iconografia oficial dos retratados. Preocupou-se sim em modelar a carne e as emoções dos grandes filósofos e escritores de setecentos que exprimem horror e incrudelidade por coisas medonhas que a condição humana não pode explicar.

Voltaire, Poème sur le désastre de Lisbonne:

«Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra! / Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra! / Exercício eterno que inúteis dores mantém!/ Filósofos iludidos que bradais “Tudo está bem”; / Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas, / Escombros, despojos, cinzas desgraçadas, / Estas mulheres e crianças amontoadas / Estes membros dispersos sob mármores quebrados / Cem mil desafortunados que a terra devora (…)/ Direis vós, perante tal amontoado de vítimas: “Deus vingou-se, a morte é o preço dos seus crimes” ?/ Que crime, que falta cometeram estas crianças / Sobre o seio materno esmagadas e sangrando? / Lisboa, que já não é, teve ela mais vícios / Que Londres ou Paris, mergulhadas em delícias? / Lisboa em ruínas, e dança-se em Paris.»

Rousseau: 

“Voltaire, parecendo crer em Deus, nunca acreditou senão no Diabo, pois pretende que Deus é um ser maléfico que se compraz em fazer dano.”

Diderot:

“Todas estas belas coisas foram apagadas do livro da vida por uma revolução tão viva como inopinada. Lisboa existia, ela já não existe, diz uma carta que nos informa que um tremor de terra acontecido no primeiro de novembro de 1755 fizera dela uma segunda Heracleia; mas uma vez que se espera hoje tirá-la das suas ruínas desceremos por um momento a cortina sobre a terrível perspectiva que a destruíra.”

Kant: 

“Há na Terra grandes labirintos e criptas que se estendem por toda parte. Contêm um fogo brilhante que, a um pequeno estímulo, pode lançar-se violentamente ao seu redor e agitar ou mesmo fender a terra.”

Goethe: 

“As chamas continuam a lavrar furiosas e à fúria delas vem associar-se a de um bando de criminosos, aliás escondidos ou restituídos à liberdade pelo cataclismo. Os desgraçados sobreviventes ficam expostos aos roubos, aos assassínios e a todas as violências, e assim a Natureza afirma, a todos os respeitos, a sua tirania ilimitada.”

Fontes

Os livros do Terramoto, Paulo Lopes, LER n.º 68, 2006

Para as citações

http://www.homeoesp.org

http://www.iag.usp.br/geofisica/new_hp_data/terremoto_lisboa_prof_Igor.pdf

http://br.groups.yahoo.com

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7872

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O canto do cisne

A apologia do Ocidente, João Fazenda, 17 novembro 2001

O suplemento do Público Mil Folhas bem pode ser considerado um último fulgor da ilustração editorial nos jornais portugueses na viragem do século. A crise na imprensa diária e semanal vinha para ficar e colaborações externas como a ilustração editorial estavam prontas para o sacrifício. Herdeiro do suplemento Leituras, o Mil Folhas versava literatura e livros, música clássica, jazz e artes plásticas. O seu design dependia essencialmente da ilustração, com metáforas graficamente sintéticas, com uma primeira página a pretender-se cartaz. O que não era prática fácil em Portugal. Não por acaso, as maquetes do projecto foram feitas com ilustrações-exemplo de artistas estrangeiros. No interior, as ilustrações tinham proporções generosas e, não raro, cobriam as duas páginas do plano. A escolha privilegiava técnicas pesadas como a pintura a acrílico, a simplicidade figurativa a ser redimida  pela densidade e sofisticação matérica. A publicação começou em 5 de outubro de 2000 e logo com uma primeira página de André Letria que, pura coincidência, mimava uma das maquetes, com ilustração pirateada de Art Spiegelman. Nos primeiros tempos do suplemento, Letria e Gonçalo Pena foram colaboradores recorrentes, ilustrando com brilho o conceito original. A ilustração sobre o Marquês de Sade e a sua prisão na Bastilha, fica como expoente máximo da mistura concentrada de simplicidade conceptual e sofisticação gráfica.

Regresso a Sodoma: Sade, André Letria, 6 janeiro 2001

Maquete (ilustração de Art Spiegelman), verão 2000; A caverna de Saramago, André Letria, 11 novembro 2000

Saul Bellow: em busca do tempo perdido, Gonçalo Pena, 25 novembro 2000

Ao longo de 2001, as ilustrações perdem  gradualmente a esquadria retangular, recortam-se sobre o branco e a tipografia ganha nitidez no contraste com o papel. Entram em cena os ilustradores digitais André CarrilhoJoão Fazenda e Luís Lázaro. Em 2001, a ilustração digital tinha atingido um excelente nível  e mesmo a acidez figurativa de Lázaro permitiu algumas das mais belas capas do suplemento. O Mil Folhas iniciou com Fazenda uma emocionante e proveitosa série de retratos que não deviam nada aos dotes caricaturais do inultrapassável Carrilho e ao academismo crónico nesta disciplina da ilustração, tão mal-amada pelos ilustradores portugueses. A primeira pedra deste caminho foi o escritor Anton Tchékhov na primeira página de 8 de setembro de 2001. E foi uma das justamente premiadas páginas no concurso do SND (Society for News Design) de 2002. Outros ilustradores passaram ainda pelo Mil Folhas: Alex Gozblau, Alice Geirinhas, Fernando Mateus, José Eduardo Rocha, Miguel Rocha, Paula Migalheiro. Em 12 de Janeiro de 2002, Alex Gozblau fechava esta série contínua de ilustrações com uma primeira página sobre Shakespeare. Incapaz de garantir espaço publicitário que o auto-financiasse, o Mil Folhas teve que reduzir custos, e passou a ser maioritariamente fotografado até ser absorvido pelo suplemento Y, já em 2007.

Anton Tchékhov, João Fazenda, 8 setembro 2001

Que livros para entender o Islão?, Luís Lázaro, 1 dezembro 2001

Reizinho no Inferno, João Fazenda, 20 outubro 2001

Harald Szeemann, o comissário da vanguarda artística europeia, André Carrilho, 27 outubro 2001


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Off the record

Energias Urbanas Radicais. Assim titulou António Cerveira Pinto uma mostra de 11 ilustradores portugueses realizada na Central Tejo em novembro de 1994. Encomenda do Clube Português de Artes e Ideias, fora da programação normal da sua Bienal de Jovens Criadores da Europa, a Bienal Off tomava o pulso a uma parte substancial da moderna ilustração portuguesa, que interpretava as inquietações da cultura urbana, a desilusão pós-abril, e a emergência dos subúrbios como força regeneradora da cidade. A agressividade dos temas e do registo gráfico, muito evidentes em Silvares, Fonte Santa, Pousada, Amaral e Lázaro, davam o tom e justificavam amplamente o título, afirmando uma geração emergente de artistas gráficos e plásticos, de que Cerveira Pinto era comentarista atento. A extrema densidade ou originalidade dos materiais de registo neste conjunto de artistas era também opção clara, deixando de fora outra parte significativa da ilustração portuguesa, então em voga, inspirada na linha clara da banda desenhada franco-belga.

Uma grande parte das ilustrações da Bienal (Pena, Fonte Santa, Amaral, Leal e Rocha) eram originárias d’ O Independente, confirmando a importância deste jornal na ilustração editorial da década de noventa. Um papel surpreendente, dada a sua orientação política. António Farinha, António Marques, Gonçalo Pena, João Fonte Santa, José Eduardo Rocha, Luís Lázaro, Paulo Leal, Pedro Amaral, Pedro Cavalheiro, Pedro Pousada e Rui Silvares davam corpo à exposição, subtitulada Cinzeiros de Baixa Pressão, e complementada ainda por vídeos de animação de Alice Geirinhas, António Rocha, Isabel Aboim e José Miguel Ribeiro. O Comissariado de Cerveira Pinto teve assessoria de Marta Anjos, João Paulo Feliciano e Jorge Silva. A Off foi ainda pretexto para uma última edição especial do Joe Índio, fanzine em formato A8, editado por Alice Geirinhas e Fonte Santa. Este último assinou também o cartaz da Bienal.

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