O número 116 da Colecção Miniatura, Um Gato à Chuva, apresenta a mesma oval ilustrada na capa, constante dos 115 volumes anteriores. Graficamente, nada parece haver a apontar. Mas a página quatro do livro revela uma subtil mudança: Bernardo Marques já não é o autor da capa. Bernardo morre em 1961, em pleno labor artístico, capista das mais extensas coleções da Livros do Brasil. A continuidade gráfica da Dois Mundos, a Livros do Brasil e a Colecção Miniatura fica assegurada imediatamente por um dos mais fascinantes, efémeros e misteriosos ilustradores da segunda metade do século XX. Até ao último número da Miniatura, o 170, o novo ilustrador pinta delicadas composições a guache, cujas dimensões honram o nome da coleção, afastando-se gradualmente do traço áspero e levemente caricatural de Bernardo. Falamos de Infante do Carmo.
A Viajante, de Gisèle Prassinos, Colecção Miniatura, n.º 123. Guache sobre papel, 14,5 x 17 cm.
O Amigo Joey, de John O’Hara, Colecção Miniatura, n.º 124. Guache sobre papel, 15 x 17,5 cm.
Um Amor de Schwann, de Marcel Proust, Colecção Miniatura, n.º 147. Guache sobre papel, 12 x 13 cm.
A Tentação do Ocidente, de André Malraux, Colecção Miniatura, n.º 159. Guache sobre papel, 12,5 x 14,5 cm.
Infante do Carmo é exceção quando comparado com os multifacetados ilustradores do seu tempo: a sua obra visível está claramente confinada ao mundo dos livros, esparsamente pelas editoras Estúdios Cor, Guimarães e Portugália e, em mais abundância, pela Inquérito e Livros do Brasil. O corpus mais interessante de Infante do Carmo está nas capas da Dois Mundos, em composições miniaturais que nos apresentam jogos de luz e sombra primorosamente executados a preto, com uma teia gráfica densa que modela volumes e planos, abdicando da linha como elemento estrutural do desenho, até ao limite do puro pontilhismo. Algumas destas ilustrações, em formato mais legível, marcariam as capas do Boletim Bibliográfico LBL, newsletter da editora, publicada entre 1961 e 1968.
Sangue e Prisão, de Curzio Malaparte, Colecção Dois Mundos, n.º 53. Primeira ilustração para a coleção.
Os Indiferentes, de Alberto Moravia, Colecção Dois Mundos n.º 73, Livros do Brasil, 1962
Os Patriotas, de James Barlow, Colecção Dois Mundos n.º 81, Livros do Brasil, 1963
Retrato do Artista Quando Jovem Cão, de Dylan Thomas, Colecção Dois Mundos n.º 71, Livros do Brasil, 1962
Kaputt, de Cursio Malaparte, Colecção Dois Mundos n.º 75, Livros do Brasil, 1962
Henderson, o Rei da Chuva, de Saul Bellow, Colecção Dois Mundos n.º 69, Livros do Brasil, 1962
Um homem Incrível, de Andrei Simeonoff, Colecção Horas de Leitura, Guimarães Editores, 1962
As primeiras ilustrações impressas que conhecemos de Infante estão nas capas da coleção Latitude da editora Estúdios Cor, nos anos de 58 a 60. O traço oscila na inspiração dos contemporâneos como Bernardo Marques ou Paulo-Guilherme, este último pela anatomia perfeita e traço elegante, visível no colecionável O Livro das As Mil e Uma Noites, da mesma época. Segue-se a Portugália, com o livro para crianças A Viagem do Salgueirinho ou capas para a Biblioteca das Raparigas, mas uma hipotética ascensão na editora terá sido travada pelo fenómeno João da Câmara Leme, que irrompeu na Portugália em 59 e viria a monopolizar o trabalho de ilustração na editora durante toda a década de sessenta. Na capa do n.º 6 da coleção de bolso da Portugália, O Corredor, de 1960, a composição e as personagens têm a clareza canónica da ilustração editorial mas o tratamente matérico é o da pintura de cavalete.
«História de Dalila Espertalhona», O Livro das Mil e Uma Noites, Volume III, Estúdios Cor, 1959
Obra de culto de Franz Kafka, A Metamorfose teve uma cuidada edição na Colecção Ilustrada da Livros do Brasil, em 1962. Infante do Carmo cria uma primorosa capa tipográfica e a bonomia anatómica das três ilustrações do miolo, à escala generosa da página inteira, serve o cómico nonsense da súbita e embaraçosa transformação de Gregor Samsa num inseto. Ainda nesta coleção, Infante do Carmo haveria de ilustrar capas de outros clássicos, como os dois volumes de O Livro da Selva, de Rudyard Kipling.
É possível que os grandes planos de rostos e cabeças que Infante desenhou em muitas capas da coleção Livros do Brasil, dedicada aos grandes clássicos da literatura brasileira, tenham sido inspirados pelo trabalho de Lima de Freitas, sobretudo pelo seu laborioso detalhe gráfico. Mas se as personagens de Freitas transpiram uma subtil inquietação, os rostos de Infante revelam uma ausência emocional a toda a prova e, com os seus olhos totalmente vazados a preto, afastam-se do naturalismo de Freitas.
O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho, Colecção Livros do Brasil n.º 81, Livros do Brasil, sem data
Cascalho, de Herberto Sales, Colecção Livros do Brasil n.º 68, Livros do Brasil, 1967
A Faca e o Rio, de Odylo Costa Filho, Colecção Livros do Brasil n.º 67, Livros do Brasil, 1967
A Colecção Romance da Livros do Brasil é integralmente ilustrada por Infante do Carmo, em virtuosas e decorativas miniaturas, centradas em capas e sobrecapas de layout constante. O registo é variado mas, dadas as exíguas dimensões, o preto é mais afirmativo e, não raro, Infante oferece-nos jogos de contraste com o branco do papel que a impressão tipográfica de duas ou três cores diretas acentua.
Ah King, de Somerset Maugham, Colecção Romance, Livros do Brasil, sem data
Pastagens do Céu, de John steinbeck, Colecção Romance, Livros do Brasil, sem data
A partir de meados de sessenta, Infante do Carmo ilustra reedições de várias coleções da Inquérito: para Os Melhores Contos dos Melhores Contistas e Os Melhores Romances dos Melhores Romancistas, o registo pictórico, de grande densidade, mantém a independência do traço linear e a preferência pela figura humana, num regresso pictórico às suas raízes de finais de 50. Para as reedições de Obras Completas de Robert Louis Stevenson e Obras Completas de Mark Twain, Infante aplica outros recursos, em contraponto com as ilustrações de Álvaro Duarte de Almeida no miolo. Mais descritivo e naturalista em Stevenson, assumidamente lúdico e geométrico em Mark Twain, num raro tour de force estilístico. Infante prosseguiria as capas da Dois Mundos até bem dentro dos anos setenta, mas o emaranhado gráfico inicial deriva gradualmente para um traço rápido e displicente. São as últimas ilustrações conhecidas do autor que, pelas nossas contas, estendeu a sua atividade de ilustrador por uns escassos treze anos.
Catriona, de Robert Louis Stevenson, Obras Completas n.º 4, Editorial Inquérito, 1966
As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, Obras Completas n.º 1, Editorial Inquérito, Sem data
As ilustrações a preto e em cores diretas foram restauradas digitalmente.
Bibliografia
https://pedromarquesdg.wordpress.com/page/22/
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