almanaque silva

Ícone

histórias da ilustração portuguesa

O Sol brilhará para todos nós! (5)

ALVALADE

Entre 25 de abril de 1974 e 25 de novembro de 1975, a caneta que tinha dissecado com  extrema violência gráfica e intelectual uma ditadura em estado de decomposição adiantado, nas páginas do Almanaque e do Diário de Lisboa, adoçou-se, comoveu-se com o entusiasmo do bom povo, com a bondosa G3 da tropa libertária, e traçou algumas das mais indeléveis imagens desse tempo. O cliente seria a 5.ª Divisão do MFA, dedicada à propaganda do novo estado das coisas e à urgência de alfabetizar o povo com a democracia, nas suas campanhas de Dinamização Cultural. O retrato, que João Abel Manta (Lisboa, 1928) pinta de um pedaço tão real como quimérico do Processo Revolucionário Em Curso, terá o seu epílogo no 25 de Novembro. Manta afasta-se do combate gráfico quotidiano nos jornais, mas os seus poderosos grafismos irão ressurgir em 1978, com uma obra-prima absoluta, Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, um ajuste de contas cruel com a ditadura, e um legado inquietante para a eternidade da nossa história.

Feitas para o formato generoso de cartaz, muitas das composições gráficas dedicadas ao tema Povo-MFA foram adaptadas a autocolantes. O traço-síntese de Manta nada perdeu com a redução, mas o seu conjunto resulta, hoje, algo estranho, pela sua erudição gráfica e pela placidez e ausência de sectarismo político, nos antípodas do mar de autocolantes do PREC. Até mesmo o «Companheiro Vasco», de linhas angulosas enxertadas entre as duas figuras consagradas, tem apenas o sabor de uma variante, sem consequências de maior para o julgamento de uma das personagens mais polémicas daqueles anos.

mfa001

mfa011

mfa023

mfa024

mfa012

A excelência gráfica de Manta puxava facilmente ao plágio camarada. A Festa da Liberdade de Alpiarça não se contentava com o Socialismo como rumo certo e acrescentava-lhe um redundante selo de garantia genuína. No autocolante, a cópia sai razoável, traída por minudências de traço, que não comprometendo a homenagem ao original, testemunha um tempo em que o calor da luta justificava a contrafação. A poderosa metáfora gráfica da união Povo-MFA tornar-se-ia um legado universal, citado, com muita regularidade, por ilustradores e cartunistas de várias gerações.

mfa003

Fontes
João Abel Manta – Caprichos e Desastres, João Paulo Cotrim, Editora Assírio & Alvim, 2008

João Abel Manta – Obra Gráfica, Câmara Municipal de Lisboa, 1992

Filed under: João Abel Manta, ,

Only Nylon

João Abel Manta Nylon 1

Um Têxtil Moderno/Uma Marca Moderna/Um Artigo Moderno

Em 1963, as camisas de poliamida faziam a sua entrada triunfante em Portugal. A invasão, francesa, exigia uma generosa campanha de publicidade e uma força de vendas com uma fé sem rugas na fibra artificial. A história conta-se numa brochura para lojistas, desenhada por uma conceituada agência de publicidade da época, a Marca. Depois de um passeio pedagógico pelas vantagens do nylon e batendo à exaustão a tecla da modernidade, a publicação desfia um verdadeiro arsenal de veículos publicitários ao serviço da marca NYLFRANCE, prometidos para o ano de 64, como cartazes, montras, rádio e televisão, jornais generalistas, revistas temáticas e  stands de exposição. Se a publicidade para têxteis e vestuário dos anos sessenta apresentava geralmente um realismo virtuoso, fotografado ou ilustrado, esta ação interna tolerava uma abordagem mais humorada e cartunesca.

Quando Orlando Costa, diretor da agência, e o jovem designer Carlos Rocha visitam João Abel Manta (Lisboa, 1928) e o convencem a ilustrar a obra, a propaganda das camisas NYLFRANCE vai ficar marcada com o mesmo traço negríssimo da sua empenhada sátira ao “Reino dos Pachecos”, o país triste e amordaçado dos anos cinzentos de Salazar, que Manta andava a exorcizar pela revista Almanaque de Cardoso Pires e Sebastião Rodrigues, e pela triunfal exposição Situação Shakespeariana no ICA, em Londres, nesse mesmo ano de 1963. Ironia suprema, as camisas de fibra, que dispensavam o ferro de engomar, destinavam-se a uma legião crescente de funcionários públicos e privados, alimentando respeitosamente as convenções de etiqueta no mundo dos negócios. Por entre os estereotipos sociais, ao fino bisturi de Manta não escapam as contradições indígenas. A confirmar, por exemplo, na ilustração do quiosque, entre as ousadas capas das revistas e a placidez doméstica da vendedora. Cronista cruel da ditadura, Manta deixa-nos aqui o retrato, tão benigno como exato, de uma modernidade alavancada à custa de uma camisa que se queria eterna. Quando a eternidade do nylon não era ainda um pesadelo ecológico.

Only Nylon

In 1963 nylon shirts made their triumphant entry into Portugal.  The invasion, a French one, needed an unsparing publicity campaign and a sales force with unwrinkable faith in this synthetic fabric. A leading advertising agency of the time called Marca designed a booklet to elucidate shopkeepers about it. After informative explorations into the advantages of nylon and endless repetitions about its modernity, the booklet paraded a well-stocked arsenal of advertising stratagems such as posters, shop-window displays, radio and TV, newspapers, trade magazines and exhibition stands, all in the service of NYLFRANCE and to be made available in1964. If publicity for textiles and clothing in the 1970s generally inclined towards realism, whether photographed or illustrated, this in-house booklet approached the subject in a more humorous manner, more like a cartoon.

When Orlando Costa, the agency director, and the young designer Carlos Rocha visted João Abel Manta (Lisbon, 1929) and persuaded him to illustrate the booklet, the NYLFRANCE shirt publicity campaign was about to feel the full impact of Manta’s very black drawing line. The same that he used in his absorbing satire on “The kingdom of the Pachecos”, that sad, gagged and muzzled Portugal of the bleak years of Salazar’s regime that Manta kept conjuring up in Cardoso Pires and Sebastião Rodrigues’ Almanaque magazine, as well as in the triumphant Situação Shakespeariana exhibition at the ICA in London also in 1963. The supreme irony was that nylon shirts, which require no ironing, were aimed at the growing legions of private- and public-sector workers, thereby respectfully adding to brand conventions in the corporate world. Contradictions among Portuguese social stereotype weren’t spared by Manta’s sharp scalpel, as in the illustration of a stand encased in magazine covers and the seller’s placid domesticity. Manta was a merciless chronicler of Portugal’s dictatorship but left us a portrait, as kindly as it is faithful, of modernity that arrives because of a shirt with an interminable lifetime at a time when nylon’s interminable non-degradability had yet to become an ecological nightmare.

João Abel Manta Nylon 2

O Homem moderno vê… televisão

João Abel Manta Nylon 3

O homem moderno vê… cartazes

João Abel Manta Nylon 4

O homem moderno lê… jornais diários

João Abel Manta Nylon 5

O homem moderno lê… revistas e jornais desportivos

João Abel Manta Nylon 6

O homem moderno ouve… rádio

João Abel Manta Nylon 7

O homem moderno escolhe nas montras

João Abel Manta Nylon 8

O homem moderno visita… stands

João Abel Manta Nylon 9

Folheto cedido por Carlos Rocha
As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored
Fontes Sources
João Abel Manta – Obra Gráfica, catálogo. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa/Museu Rafael Bordalo Pinheiro, 1992.
João Abel Manta – Caprichos e Desastres, João Paulo Cotrim. Lisboa: Assírio & Alvim, El Corte Inglés e Câmara Municipal de Lisboa/Museu  Bordalo Pinheiro, 2008.

Filed under: João Abel Manta, ,

Rigor Mortis

Jogo da Glória, Almanaque dez 1960-jan 61

Foi o herdeiro das resmas de Almanaques, Almanachs e Almanaks que fizeram as delícias de século e meio de burgueses sedentos de cultura em comprimidos. A estrutura era a mesma, sortido fino e grosso de calendário e cultura geral, coisa engendrada pelo editor Figueiredo Magalhães, o escritor Cardoso Pires e mais uma mão cheia de venenosos escribas com muitas contas a ajustar com o seu cantinho à beira-mar. Este Almanaque tinha a mão do designer Sebastião Rodrigues, tecendo a sua obra prima de portugalidade gráfica e, a páginas tantas, o cronista fatal para aqueles cinzentos anos de um regime que, se abria mão aos prazeres do gazcidla e do frigorífico, amodorrava as consciências numa amnésia de naus e armaduras, censurando zelosamente todo o papel impresso e por imprimir. João Abel Manta (Lisboa, 1928) chega ao Almanaque em dezembro de 1960. E acabam logo ali os cartoons avulsos que eram tique sediço de outros Almanachs. E começa gloriosa cavalgada ilustrando o cadáver, já putrefacto nos anos sessenta, do Estado Novo, o malfadado Reino dos Pachecos, maquinação em código deste Almanaque. Foi a paródia aos epicenos (definição: nomes dos animais que designam indiferentemente o macho ou a fémea) inventariando as fases de vida de um típico casal com o seu cortejo de ilusões e secretas infidelidades. Foi a passerelle de uniformes urbanos de variegada fauna, os artistas reumáticos da Sociedade Nacional de Belas Artes, os intelectuais caixa de óculos que queriam salvar o mundo à mesa do café, os marialvas, toureiros e pintas de toda a pinta, que escondiam as mulheres em casa para se babarem de gozo na rua. Foram as mazelas escondidas da Lisboa capital, a precisar de novo terramoto. Foi, enfim, o retrato crudelíssimo de uma sociedade de tristes à espera de um longínquo Abril. O traço limpo e esquemático de JAM, parente rico do seu labor de arquitecto, haveria de se tornar mais nodoso e necrófilo ao longo dos sessentas e setentas, até à obra primíssima Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, o corpus-mortem mais empenhado da miséria lusa, se descontarmos o bisturi de outro médico legista um pouco mais desbocado, o famigerado José Vilhena. Caro leitor, Não lhe parece que o Reino dos Pachecos está de volta, ou mais precisamente, nunca acabou?

Rigor mortis

He inherited reams of almanaques, almanachs and almanaks that delighted for a hundred and fifty years the middle-class thirst for culture in a pill form. The structure was the same and consisted of a refined and a less refined choice of calendar events and general culture. It had been conceived by the publisher Figueiredo Magalhães, the writer Cardoso Pires and a handful of writers with venomous pens and many a score to settle with this their little homeland-by-the-sea. Behind the Almanaque was the designer Sebastião Rodrigues, whose illustrated ‘Portugueseness’ was a work of art. At some page or other, he would bleakly chronicle the grey years under Salazar’s New State, which allowed the country to enjoy the benefits of fridges and gas at home, but also dulled people’s awareness in an amnesia brought on by Portugal’s past, its caravels and armour. The regime zealously censored and controlled all and any paper that had been or was to be printed on. João Abel Manta (Lisbon, 1928) came to Almanaque in December 1960. And this put an immediate end to the assorted cartoons that had become the stale practice in other Almanachs. But it was the start of the glorious cavalry charge of the cadaver of Salazar’s regime, already putrid by the 1960s, in the ill-starred Reino dos Pachecos [Reign of the Pachecos], the Almanaque’s coded ruse to dodge the censors. It was a spoof on epicenes (animals that lack gender distinction) and listed the phases in the life of a typical couple and the trail of illusions and secret infidelities they leave behind. It was a parade of different animals in urbane uniforms: rheumatic artists from the National Fine Arts Society, bespectacled intellectuals who wanted to save the world while sitting in cafés, aristocratic rakes, bullfighters, creatures of all shapes and sizes who kept their womenfolk at home and out of sight while they drooled with the pleasures of the streets. They represented the concealed, squalid flaws of Lisbon, a capital in need of another earthquake. It was a bitterly cruel portrait of a sad society waiting for some distant April revolution. Manta’s clean, concise style, related to his architectural work, would become more voluminous and necrophiliac throughout the 1960s and 70s. He then produced that great work of art, Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, the most unwavering ‘corpus-mortem’ of Portuguese miserableness if we leave out another coroner with a scalpel, the remarkable and slightly bolder José Vilhena. Dear Portuguese Reader, doesn’t it seem to you that the Reino dos Pachecos has returned, or rather, it never really came to an end?

Pequeno Mostruário de Uniformes da Noite «Midnight Snacks» e Literatura de Chevet, Almanaque, maio 1961: o Sedutor; o Artista Plástico e o Proletário do Alto Pina; o Último dos Roupinhos e o Chefe de Repartição

Manifesto Suave Pela Reeducação dos Adultos, Almanaque, dezembro 1960-janeiro 1961

O Comum de Dois, Almanaque, fevereiro 1961

Quem Não Quer Ser Homem Não Lhe Veste a Pele, Almanaque, dezembro 1960-janeiro 1961

Monumentos (Subterrâneos e Subaquáticos) Ignorados de Lisboa, Almanaque, março-abril 1961

Pequeno Álbum de Fantasmas Genuínos Devidamente localizados e Referenciados, Almanaque, maio 1961: William (Wildbill) Peacock e Don Juan Baltasar Valdés de Alarcon; Ernesto da Purificação Semedo e Sturmbannfueher Hermann Rudolf Von Streicher

As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored
Fontes Sources
João Abel Manta, Obra Gráfica, catálogo, Câmara Municipal de Lisboa, 1992
João Abel Manta, Caprichos e Desastres, João Paulo Cotrim, Assírio & Alvim / El Corte Inglés / CML, Museu Bordalo Pinheiro, 2008

Filed under: João Abel Manta,

Visitas

  • 603.545

Posts