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histórias da ilustração portuguesa

Cântico dos Cânticos

João Carlos Cântico dos Cânticos 8

Enquanto o rei se encontra em seu encosto, o meu nardo exala o seu perfume. O meu Bem-amado é um ramalhete de mirra, deitado a descansar entre os meus seios; o meu Bem-amado é um cacho de cipre, das vinhas de Hen-Guedi.

Assim exaltava Sulamita a sua paixão no Cântico dos Cânticos, um dos livros Sapienciais do Antigo Testamento. Calcula-se ter sido escrito à volta de 400 anos antes de Cristo, alegadamente pelo rei Salomão, e é uma curta coletânea de hinos nupciais de requintada sensualidade, provavelmente usados em festas de casamentos. Apesar da sua brevidade, o poema é complexo alternando as falas de diferentes personagens: o noivo, a noiva Sulamita e o Coro das Filhas de Jerusalém. A interpretação alegórica deste livro da Bíblia compara o amor de Deus por Israel e do povo pelo seu Deus com as canções de amor entre os futuros esposos. Ou a celebração da fidelidade mútua no matrimónio abençoado por Deus. Cântico dos Cânticos teve uma curiosa edição no Rio de Janeiro em 1942, da Editora Monte Scopus, ilustrada pelo português João Carlos, e traduzida por Samuel Schwarz, engenheiro de minas polaco e historiador da cultura judaica. São sumptuosas, as oito ilustrações de João Carlos. A tinta da china satura voluptuosamente o papel, descrevendo sofisticados cenários de vegetação luxuriante e tapeçarias de intrincados arabescos. Os corpos lânguidos, alvos e esguios, são um convite às delícias do amor carnal.

João Carlos (Ílhavo, 1899-Lisboa, 1960) era apenas metade de uma personagem complexa, mestre de muitas artes e ofícios. Assinando com os apelidos Celestino Gomes, foi poeta, prosador, ensaísta e divulgador científico, na rádio, televisão e jornais, associado ao seu labor de médico. Assinando João Carlos foi pintor, ilustrador, xilogravador e entalhador. O requinte gráfico de Cântico dos Cânticos emparceira com outras obras suas da década de quarenta como o Auto da Pastora Perdida e da Velha Gaiteira, a Farsa dos Físicos, Epigramas Médicos de Bocage e, sobretudo, o Livro de Ester, outra obra do Antigo Testamento, onde o sangrento exílio dos judeus na Pérsia é contado com uma qualidade e minúcia ainda mais impressionantes que no Cântico. Vinte anos depois, um outro Cântico dos Cânticos, ilustrado por Cipriano Dourado, o mais sensual dos nossos neorrealistas, foi editado pela Delfos, em 1962. Mas a simplista gramática visual de Dourado perde facilmente para o traço sinuoso e a ornamentação onírica e orientalizante de João Carlos. Religioso e humanista, influenciado pelas gravuras do japonês Hokusai, pelos Primitivos de Quatrocentos, pela arte bizantina e oriental, pelos desenhos de Amadeo de Sousa Cardoso, o horror ao vazio de João Carlos construiu uma emocionante epopeia gráfica, à margem do modernismo geometrizado da Política do Espírito do Estado Novo.

Song of Songs

While the king was at his repose, my spikenard sent forth the odour thereof.

A bundle of myrrh is my beloved to me, he shall abide between my breasts.

A cluster of cypress my love is to me, in the vineyards of Engaddi.

Thus the Shulamite rejoiced in passionate love in the Song of Songs, one of the scriptures in the Old Testament. Believed to have been written about four hundred years before Christ by King Solomon, the Song of Songs consists of a small number of hymns of exquisite sensuality that were probably sung at weddings. Although short, the poem is rather complex as different people in turn speak: groom, Shulamite bride and the Daughters of Jerusalem chorus. The allegorical reading of this scripture compares God’s love for Israel, and that of his people for their God, with the love canticles of future married couples; or then the celebration of mutual fidelity in a marriage blessed by God. An interesting edition of the Song of Songs was published by Editora Monte Scorpus in Rio de Janeiro in 1942, with illustrations by the Portuguese João Carlos in a translation by Samuel Schwarz, a Polish mining engineer and historian of Jewish culture. The eight illustrations by João Carlos are sumptuous. In Chinese ink that voluptuously soaks into the paper, they depict sophisticated settings of luxuriant vegetation and tapestries of entangled arabesques. Languid, slim, light-skinned bodies are an open invitation to the joys of carnal love.

João Castro (Ílhavo, 1899-Lisbon, 1960) was just one half of a complex character, the master of many arts and crafts. Going under the name of Celestino Gomes, he was poet, prose and essay writer, as well as science communicator – due to his work as a doctor – on radio and television programmes and newspapers. Under the name of João Carlos, he was painter, illustrator, wood engraver and woodcarver. The graphic sophistication of his Song of Songs is equal to that of his other 1940s works: Auto da Pastora Perdida e da Velha GaiteiraFarsa dos FísicosEpigramas Médicos de Bocage and, above all, Livro de Ester, again from the Old Testament. Here the ruthless exile of the Jews in Persia is told in even more impressive quality and detail than in the Song of Songs. Twenty years later, the Song of Songs was illustrated by Cipriano Dourado, the most sensual of Portugal’s exponents of neo-realist art, and published by Delfos in 1962. But his simplistic visual grammar quickly pales in comparison with the sinuous line and dreamlike orientalist ornamentation of João Carlos’ illustrations. A religious man and a humanist, he was influenced by the prints of Japanese artist Hokusai, fifteenth-century Flemish Primitives, Byzantine and Oriental art and the drawings of Amadeo de Sousa Cardoso. His horror of the void led him to create a touching graphic epic art outside the norms of the geometrical modernism of the Estado Novo’s Política do Espírito.

João Carlos Cântico dos Cânticos 9

João Carlos Cântico dos Cânticos 2

João Carlos Cântico dos Cânticos 3

João Carlos Cântico dos Cânticos 4

João Carlos Cântico dos Cânticos capa

As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored
Fontes Sources
João Carlos, Américo Cortez Pinto. Lisboa, 1961

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A Cassete

Honra seja feita ao Dr. Álvaro Cunhal. Desta vez não se repetiu, repetiram-no. Álvaro Cunhal (Coimbra, 1913-Lisboa, 2005) foi ilustrador acidental, mais empenhado na luta política e na polémica ensaística. Ilustrando a primeira edição de Esteiros, obra seminal do Neorrealismo literário português, estava obviamente mais interessado no conteúdo que na forma. A figuração neorrealista típica estava perto mas só com Manuel Ribeiro de Pavia atingiria o seu esplendor, em meados da década. O traço e a modelação incipientes e a composição e grafismo tímidos, não fazem propriamente uma capa memorável. Mas as caras famélicas e os andrajos dos três rapazes denunciam explicitamente a sua condição de deserdados sociais e as opções políticas do ilustrador. Cunhal trabalhava como regente de estudos no Colégio Moderno, a convite de João Soares, pai de Mário Soares, quando fez a capa para as Edições Sirius, em 1941. Em Dezembro do mesmo ano, acossado pela polícia política, entrou mais uma vez na clandestinidade.

João Carlos (Ílhavo, 1899-Lisboa, 1960) ilustrou a segunda versão. Não sabemos as razões da cópia. Apenas supor que ela foi assumida, embora com outras preocupações artísticas. Entre 1943 e 46, João Carlos assina portentosas capas para a Editorial Gleba, nomeadamente para as duas coleções Romances Célebres e Romancistas de Hoje. Nesta última, em 1946, sai a segunda edição de Esteiros. As diferenças formais são notórias, a encenação é evidente, os contrastes vincados e elementos dramáticos como as nuvens são acrescentados. Os petizes transformam-se em despreocupados aventureiros, o que também não fica mal ao enredo do livro. Não seria João Carlos, atormentado humanista, insensível ao infortúnio dos personagens. Mas a sua gramática gráfica não realista, afirma o primado da forma sobre o conteúdo. E com nova forma, um conteúdo novo.

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Madame Butterfly

Sayona-San, uma enigmática japonesa, é actriz principal de um filme de confeção lusa em terras do Japão. O enredo desdobra-se simultaneamente no palco e na vida real. Sayona-San e a sua personagem Irochi-Ko, debatem-se entre o respeitoso cumprimento dos costumes ancestrais e uma paixão incontrolável pelo galã do filme, herói alado cujo hidroavião se despenhara no cais, e o operador de câmara do filme, o português Rui. A actriz mata-se no final, depois de incendiar as bobines do filme, incapaz de assumir na vida real a sua fatal paixão. A novela, publicada no Magazine Bertrand de maio de 1930, decalca a saga de Cio-Cio-San, a trágica Madame Butterfly de uma das óperas mais famosas de Puccini.

João Carlos (Ílhavo, 1899-Lisboa, 1960) ilustra aqui um texto de Celestino Gomes. Ou seja, ilustra-se a si próprio. Assinando com os apelidos Celestino Gomes foi poeta, prosador, ensaísta e divulgador científico, associado ao seu labor de médico. Assinando João Carlos foi pintor, ilustrador, xilogravador e entalhador. Iruchi-Ko é um concentrado poético e gráfico da paixão de João Carlos Celestino Gomes pela cultura oriental e revela-nos o caminho para as obras primorosas das duas décadas seguintes, como o Livro de Ester (1933), Cântico dos Cânticos (1942), Medicina na Literatura (1943) e Farsa dos Físicos ou Epigramas Médicos de Bocage (1945).

O traço sinuoso e preciso, a ausência de perspetiva e a ornamentação saturada superam o realismo e revelam a espiritualidade e o onirismo que foram todo um programa de arte e vida do ilustrador. Religioso e humanista, influenciado pelas gravuras do japonês Hokusai, pelos Primitivos de Quatrocentos, pela arte bizantina, o horror ao vazio de João Carlos construiu uma epopeia gráfica que poderia ter sido um outro retrato possível de Portugal, à margem do modernismo oficial da Política do Espírito de António Ferro e do Estado Novo.

Nota: as ilustrações foram restauradas digitalmente

Fontes:
João Carlos, por Américo Cortez Pinto, Lisboa, 1961
In Memoriam, Aveiro, 1962
João Carlos, Exposição Retrospectiva, SNI, 1964
blogdaruanove.blogs.sapo.pt

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