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histórias da ilustração portuguesa

Uma aventura na Grécia

Esta é uma história dos tempos em que a Grécia se batia com formidáveis colossos como o sofisticado império persa de Artaxerxes e não com os hodiernos bárbaros Gauleses ou Germanos. No livro Anábasis, que quer dizer retirada para o interior, traduzido como A Retirada dos Dez Mil, o ateniense Xenofonte relata as atribuladas aventuras de um exército grego, desempregado desde o fim das Guerras do Peloponeso, após uma expedição mercenária à Pérsia para combater ao lado do ambicioso Ciro, o Jovem, contra o seu irmão Artaxerxes II. Apesar da morte de Ciro, os gregos venceram, mas foram atraiçoados num simulacro de armistício e os seus chefes chacinados. Os mercenários legeram novos líderes, entre eles Xenofonte, e resolveram regressar a casa numa penosa jornada, pelo ano 401 antes de Cristo.

A edição portuguesa referenciada integrou uma coleção de obras completas de Aquilino Ribeiro que teve uma preciosa tiragem especial de 300 exemplares iluminada por alguns dos grandes ilustradores editoriais portugueses das décadas de cinquenta e sessenta. N’A Retirada dos Dez Mil (que Aquilino traduziu e prefaciou copiosamente), a anatomia nervosa e caligráfica de Júlio Gil (Lisboa, 1924-2004) resolveu bem estas matriciais aventuras de capa e espada, com dez ilustrações espalhadas no miolo do livro. Tal como muitos dos seus colegas contemporâneos, Gil utilizou uma segunda cor para modelar volumes e perspetivas, mas este recurso, corrente nas edições da época, atingiu aqui uma qualidade superlativa, tributária do mestre da banda desenhada que Gil também foi. O açafrão de pincelada larga, extravasando a prisão do traço negro, cria planos autónomos que interagem numa espécie de sequência narrativa, como por exemplo, na negociação do armistício com os Carducos, onde os guerreiros gregos em terceiro plano sugerem o fatal desenlace do encontro. Gil já tinha glosado o tema em oito pranchas de banda desenhada para o primeiro volume de Mar Alto, uma compilação de textos para o 1.º ano do Ciclo Preparatório e para o curso Complentar do Ensino Técnico Profissional.

Depois de enfrentarem povos hostis, chefes tribais sanguinários e o relevo acidentado da Arménia, os 10 mil chegaram finalmente a Trebizonda, na costa do Mar Negro, para serem repatriados. Quando vêem o mar saudam-no com o grito thálassa, thálassa! (O mar, o mar!).

An adventure in Greece

This is a story about the days when Greece battled against formidable giants, such as the sophisticated Persian empire of Artaxexes, and not just cheap Gallic or German barbarians. In his book Anabasis, which is Greek for ‘going up’ and translated as The Retreat of the Ten Thousand, Xenophon of Athens tells of the chequered adventures of a Greek army and its soldiers who, finding themselves out of work at the end of the Peloponnesian Wars, formed a mercenary force to go on an expedition to Persia and fight Artaxerxes II on the side of his ambitious brother, Cyrus the Younger. Although Cyrus was killed, the Greeks won the battle but tricked by a false armistice, their leaders were butchered. They elected new ones, including Xenophon, and decided in 401 BCE to return home on what was to prove a gruelling journey.

This Portuguese edition was part of a collection of the complete works by Aquilino Ribeiro (who translated it and wrote a long introduction). A precious special run of 300 copies of the collection was printed and several great Portuguese editorial illustrators of the 1950s and 60s illuminated the stories. Júlio Gil (Lisbon, 1924-2004) with his nervy anatomic sketching and calligraphy deftly handled these ancient heroic adventures, templates for later swashbuckling tales, with ten illustrations spread out throughout the book. Like many of his contemporary illustrators, Gil used a second colour to create volume and perspective, and this method, though a normal luxury in printing at the time, attained a superlative quality here, as could be expected from the master of the comic strip that Gil also was. The saffron yellow in wide brush strokes that spills over the black-line prison creates autonomous planes that interact in a kind of narrative sequence, as in, for instance, the negotiation for an armistice with the Carduchi, where the Greek warriors in the third plane hint at the deadly outcome of the meeting. 

Having faced hostile peoples, bloodthirsty tribal leaders and the difficult terrain of Armenia, the ten thousand eventually reached Trabzon on the coast of the Black Sea as they made their way home. When they sighted the sea, they cried out ‘Thalassa, thalassa!’ (The sea, the sea!). 

As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored

Fontes Sources

Prefácio de Aquilino Ribeiro para A Retirada dos Dez Mil, edição da Livraria Bertrand, 1957

Foreword by Aquilino Ribeiro for The Retreat of the Ten Thousand, Livraria Bertrand, 1957

http://scriptavirtual.blogspot.com


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Luz dos meus olhos

O milagre de Deu-La-Deu, do livro Brisa dos Tempos Idos, de Adelino Peres Rodrigues, 1957

Não houve outros olhos assim na ilustração portuguesa. Olhos líquidos, transparentes, famintos de amor e de justiça, varados pela fé e por manso sofrimento. São os olhos de Júlio Gil (Lisboa, 1924-2004), ilustrador e capista privilegiado da poesia atormentada da Sociedade de Edições Culturais; da desilusão amorosa dos livros light da União Gráfica e da Biblioteca das Raparigas da Editora Portugália; do arrebatamento místico dos Quadros do Evangelho do Camarada, revista de quadradinhos da Mocidade Portuguesa; da exaltação patriótica dos jornais da mesma organização; da gesta histórica portuguesa em livros oficiais e oficiosos; e do jovem boxeur Chico, detetive amador nascido nas páginas do Camarada e autonomizado em coleção juvenil da Editora Pórtico.

Olhemos de perto. O que torna estes olhos tão humanos e especiais são apenas dois ou três traços rápidos e assimétricos que o ilustrador risca no papel, ao invés de desenhar redondas e convencionais pupilas. São olhos claros, que noutras mãos seriam de cor, e aqui apenas espelho de emoções. Gil desenhou outros olhos, maliciosos e violentos, em preto fechado, outros ainda em branco total, cegos de loucura, como na poesia de Domingos Monteiro. Contemporâneo de alguns dos mais preciosistas ilustradores portugueses como Fernando Bento, Manuel Lapa ou Luís Filipe de Abreu, Júlio Gil traçou um percurso exemplar com o seu singelo traço filiforme, aplicado em registo sintético ou em camadas densas de óbvias propriedades cinéticas, ajustando-se naturalmente a narrativas de forte intensidade física e emocional. Tão descritivo e, ainda assim, tão capaz da metáfora e da paixão. Não houve outros olhos assim…

Mãe e Filho, Alma Encantada-III, de Romain Roland, Editora Portugália, s.d.

Os herdeiros, de Suzanne Clausse, Editora União Gráfica, Coleção Feminina n.º 5, s.d.

O mundo de Cristina, texto de Natércia Freire, revista Panorama n.º 5 III Série, Março de 1957

História de um presente, jornal Camarada n.º 26, 26 Dezembro 1964

Curva na estrada, revista Fagulha n.º 50, 1 fevereiro 1960

Contraluz, de Odette de Saint-Maurice, Editora Portugália, 1955

Chico e o ídolo, de Júlio Gil, Editorial Pórtico, Coleção Aventuras do Chico, s.d.

Lições de abismo, de Gustavo Corção, Editora SET, s.d.

Telegrama Pax, edição dos CTT, s.d.

Histórias do mês de outubro, de Domingos Monteiro, Editora SEC, 1967

Marés vivas, de Luiza Manoel de Vilhena, Editora SEC, 1968

A cura do cego Bartimeu

À beira da estrada estava sentado um ceguinho chamado Bartimeu, que pedia esmola.

Ouvindo muitas vozes quis saber o que tinha acontecido.

— É Jesus da Nazaré que vai a passar – disseram-lhe.

Jesus da Nazaré?! O homem espantoso que curava os paralíticos, ressuscitava os mortos, perdoava aos pecadores e dava vista aos cegos?!…

Bartimeu ficou cheio de esperança, e juntando as mãos, gritou com toda a força da sua alma:

— Jesus, Filho de David, tem compaixão de mim!

Os que passavam bem o mandavam calar para que não importunasse o Mestre com as suas lamúrias, mas Bartimeu repetia com muita fé, e cada vez mais alto:

— Jesus, Filho de David, tem compaixão de mim!

Jesus ouviu-o e parou. Depois pediu que Lho trouxessem.

Ao saber que Jesus o chamava, o cego ergueu-se de um salto e correu para Ele. Jesus perguntou-lhe:

— Que queres que eu te faça?

— Senhor, faz com que eu veja — pediu o cego fervorosamente.

— Vê. A tua fé te salvou — disse Jesus.

Imediatamente Bartimeu recuperou a luz dos olhos e seguiu Jesus, dando graças a Deus pelo milagre. E quantos presenciaram a cura do cego de Jericó davam também louvor e glória a Deus.

Quadros do Evangelho, Jornal Camarada n.º 3, 8 de Fevereiro de 1964

As ilustrações foram restauradas digitalmente

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Lá vamos cantando e rindo

A inquietante perspetiva de uma Espanha comunista em resultado da Guerra Civil e o fascínio da direita extremista portuguesa pelas ditaduras italiana e alemã forçaram Salazar à criação de organizações paramilitares como a Legião e a Mocidade Portuguesa em 1936. Esta última decidia-se a moldar os infantes portugueses aos valores nacionais e combater o internacionalismo bolchevista. Tratava-se de saturar a cabeça de doutrina e o corpo de exercício, até para evitar os malefícios do onanismo (práticas genésicas, como se dizia na altura). Avesso a extremismos, o ditador controla como pode estas problemáticas organizações, nomeando chefias da sua confiança. O principal doutrinador da MP, e mais tarde seu comissário geral, Marcelo Caetano, viria a ser o delfim e sucessor de Salazar. Em 1937, nascia a Mocidade Portuguesa Feminina, “sentinelas da alma de Portugal”, que enquadraria as suas filiadas no seio do lar e da família, oportuna retaguarda dos valorosos guerreiros da congénere masculina. A farda das MPs era peça fundamental na disciplina coletiva e na encenação de desfiles e paradas. As MPs dividiam-se em Lusitos/Lusitas, Infantes, Vanguardistas e Cadetes/Lusas, em categorias dos 7 aos 25 anos, cada uma com farda própria. A representação gráfica das MPs foi evoluindo ao sabor do seu papel político e social e do grafismo dos ilustradores de várias gerações. Nem o velhinho Alfredo Moraes (na altura, já com 65 anos) escapou à chamada, ilustrando os garbosos mancebos, logo em 1937, para um Livro de Leitura dos Liceus.

Portugal é grande, Livro de Leitura para o 1.º Ciclo dos Liceus, ilustração de Alfredo Moraes, Livraria Popular de Francisco Franco, 1937

Livro de Leitura para a 4.ª Classe do Ensino Primário, ilustração de Fernando Bento, Livraria Avis, Porto, s.d.

La jeunesse Portugaise à L’École, I.ere et II.e année, ilustração de Lino António, Livraria Sá da Costa Editora, 1939

O alistamento nas Mocidades era obrigatório dos 7 aos 14 anos e as suas actividades enquadradas a partir da escola. Naturalmente, os manuais escolares dos anos trinta a cinquenta refletiram esta presença obssessiva da MP, incluindo o diploma do Ensino Primário Elementar. Num curioso livro de Francês de 1939, Lino António ilustra com bonomia petizes orgulhosos das suas fardas por entre páginas carregadas de ideologia estado-novista. Os efémeros cadernos escolares de escrever e contar usaram abertamente a iconografia da MP nas suas capas de papéis baratos geralmente impressas a uma cor e sem menção de autor. Um dos mais curiosos talvez seja o do caderno Lusitos/Lusitas, onde compactas filas de miúdos rigorosamente iguais fazem lembrar um inquietante Mundo Novo ariano. Na literatura para a infância, as MPs assumiam a gesta histórica do país, somando-se à reconquista medieval e à epopeia dos Descobrimentos. No livro História de Portugal para Meninos Preguiçosos de Olavo D’Eça Leal (o menino preguiçoso era o filho do autor, Paulo Guilherme, reprovado em História mas futuro “doutor” em Ilustração e Design), a ilustração final, de Manoel Lapa, é um happy end, com as organizações irmãs, Mocidade e Legião, garantindo o devir português.

Caderno escolar, frente e verso, s.d.

Redacções, 4.ª Classe e Admissão aos Liceus, Livraria Popular de Francisco Franco, s.d.

A este devir vanguardista não foram insensíveis os ilustradores modernistas. Já em 1938, num opúsculo de Silva Tavares, Almada Negreiros desenhava uma juventude heróica e triunfal. Mas o esteticismo modernista cedeu o lugar à juventude belicista da década seguinte, com a escalada da Segunda Guerra Mundial, bem explícita na abundante produção gráfica de Júlio Gil, ele próprio destacado dirigente da organização. O Jornal da MP exemplifica o período de maior extremismo ideológico e doutrinação política. É tempo da pose firme e das baionetas caladas dissipando a treva bolchevista. Em Maio de 1943, temendo a invasão de inimigos ou aliados, os filiados da MP faziam caricatas rondas nos castelos e monumentos nacionais, gritando senhas de reconhecimento. O desfecho do conflito e a reorganização política e social sequente esvaziaram a importância da MP como bastião do regime. Gradualmente perdeu o seu cariz militarista e patriótico acabando na inofensiva organização de tempos livres, ao jeito dos Escuteiros, até à extinção natural em 1974.

Roteiro da Mocidade do Império, Silva Tavares, ilustração de Almada Negreiros, Agência Geral das Colónias, 1938

O canto da Mocidade, texto de Odette de Saint-Maurice, ilustrações de Mário Costa, Empresa Nacional de Publicidade, 1938

História de portugal para meninos preguiçosos, Olavo D’Eça Leal, ilustrações de Manuel Lapa, Livraria Tavares Martins, 1943

Tronco em flor, Joäo Carlos Beckert de Assunção, ilustrações de Júlio Gil, Mocidade Portuguesa, 1944, original, guache sobre papel

Jornal da MP, n.º 40, 11-XI-1944, ilustração de Júlio Gil

O valor moral da Educação Física, Alberto Feliciano Marques Pereira, ilustrações de Álvaro Duarte de Almeida e Eduardo Teixeira Coelho, 1949

Fontes

Mocidade portuguesa I [Masculina] e Mocidade Portuguesa II [Feminina], texto de Manuel A. Ribeiro Rodrigues, ilustração de Carlos Alberto Santos, editora Destarte, 2003.

Portugal Século XX – Crónica em imagens 1930-1940, 1940-1950, Joaquim Vieira, Círculo dos Leitores, 2000

Mocidade Portuguesa, Joaquim Vieira, A Esfera dos Livros, 2008

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Feliz Natal, Sr. Lourenço

Boas Festas e Felicidades no Ano Novo“, “Agradecimentos pelos Amáveis Votos de Boas Festas Cordialmente Retribuídos” ou “Natal Alegre e Ano Novo Muito Feliz“. Escolhia-se a frase, preenchiam-se remetente e destinatário, dobrava-se o impresso em seis partes e a simpática missiva estava pronta para aumentar a Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Manuel Cerejeira, amigo íntimo de Salazar, ascendeu a cardeal-patriarca de Lisboa em 1930. Igreja e Estado Novo partilharão doravante a ideologia e retribuirão favores e obediências, ela ressentida dos desmandos da Primeira República, ele esperando ajuda na pacificação do rebanho. O sucesso dos telegramas postais ilustrados dos CTT no Natal (BF), a partir de 1934, multiplicou-se em 1936 com o envio de impressos similares pela Páscoa (PAX). Circularam até 1972 e constituem um emaranhado de designações conforme as versões com frases pré-definidas ou de texto livre, e modos de envio, a partir dos postos dos Correios ou diretos do remetente ao destinatário (directos e autógrafos). A face frontal dos telegramas tinha moldura apelativa com ilustrações alusivas à quadra natalícia.

A iconografia estereotipada do nascimento e ressurreição de Jesus pedia mão realista e virtuosa como a de Júlio Gil (1924-2004), Alfredo Morais (1872-1971) e Raquel Roque Gameiro (1889-1970). São do infatigável Morais três exemplares de BF com risonhos querubins vestidos de bibe, Reis Magos em trânsito, e uma ternurenta Natividade, em aguarelas naturalistas salpicadas a ouro, a dos benjamins a lembrar a de Raquel, ilustradora mais preciosista com as suas rosadas criancinhas. Júlio Gil, cujo grafismo ascético se prestou sempre à ilustração da doutrina e da fé, ilustrou os restantes exemplares em generosas impressões a cinco e seis cores diretas. Caros e raros, os telegramas ilustrados podem ser encontrados em feiras de colecionismo especializado como a do Mercado da Ribeira, em Lisboa, aos domingos de manhã.

Alfredo Moraes, s.d.

Alfredo Moraes, s.d.

Alfredo Moraes, 1957

Raquel Roque Gameiro, 1956

Júlio Gil, s.d.

Júlio Gil, 1958

Júlio Gil, 1962

Júlio Gil, s.d.

Júlio Gil, s.d.


Publicidade ao serviço PAX, ilustração de Oskar, 1942

Fontes

http://www.inteirospostais.com/ostelegramaspostaispax.htm

Catálogo de Inteiros Postais Portugueses, 1º Volume de José da Cunha Lamas e A.H. de Oliveira Marques”

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