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histórias da ilustração portuguesa

Pernas para que te quero!

A literatura para a infância dos anos quarenta do século passado distancia-se dos ideais republicanos de progresso e igualdade e passeia-se pelas fábulas moralistas, cruéis e iniciáticas dos Irmãos Grimm e afins, vigiada por um Estado Novo mais concentrado nos malabarismos da sua ambiguidade pró-germânica e pró-aliada durante a guerra, e o seu calculista alinhamento pelos vencedores após a derrota do Eixo. A Majora, editora especializada em livros e jogos para crianças, inundou o mercado com obras atraentes e acessíveis, baseados em rocambolescas aventuras de petizes aventureiros, anões pencudos e animais falantes, enésimas adaptações de contos e fábulas de um inesgotável catálogo universal. Protagonista desta avalanche, autor simultâneo de texto e ilustrações, Gabriel Ferrão divide com Laura Costa e César Abbott a produção artística da Majora durante a década. Nos livros de Ferrão, de 1948 a 1950, há uma curiosa repetição: heróis como o Malaquias, o Tio Sabe Tudo, o Zé Pacóvio, o Serigaito, a Joanico, o Serapião Tobias, o Chico Pinoca, o Papo-Seco, o Julião Pespirete, e outros nomes cómicos de sabor popular, palmilham léguas em demanda de tesouros escondidos e vinganças adiadas, em turismo de pé-descalço por bosques e vales, por caminhos e atalhos bordados a vedações de madeira e cogumelos alucinogénicos, em cenários de casario medieval.

Esta obsessão pela aventura andarilha, arrostando perigos desconhecidos, é um arquétipo das histórias infantis, evidência dos ritos de passagem ao estado adulto, onde os obstáculos constituem prova de superação e aperfeiçoamento físico e moral. Os nossos protagonistas escapam-se habitualmente de patrões e padrastos violentos, desbaratam pelo caminho mentirosos, intriguistas, avarentos e ladrões, e chegam ao fim da jornada ricos e sábios. Do ilustrador Gabriel Ferrão pouco se sabe. Artífice prolífico e incontornável da literatura para a infância nos anos quarenta e cinquenta, Ferrão pagou com o ostracismo de historiadores e pedagogos a figuração cómica e naif dos seus bonecos, imitação irregular dos desenhos animados dos estúdios americanos. Sem o virtuosismo gráfico de um Vasco Lopes de Mendonça nem a elegância de uma Laura Costa, a patusca ingenuidade de enredos e ilustrações, espalhada por muitas coleções da Majora, como a Coelhinho Branco, Salta Pocinhas, Sarapico-Mafarrico, Gato Preto, Pequenina e Pequeno Detective, tem, passados sessenta anos, um irresistível encanto. E um aspeto de surpreendente modernidade: a tipografia desenhada e integrada na ilustração das capas é um paradigma gráfico absolutamente contemporâneo.

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