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histórias da ilustração portuguesa

É a Guerra!

1942 vacuum é a guerra

Faltava o açúcar, o arroz, o bacalhau, o sabão, o azeite, o leite, o café, os cereais e a batata. As más colheitas agrícolas de 1940 e 1941, somadas ao açambarcamento e ao mercado negro, provocaram em Portugal, a meio da Segunda Guerra Mundial, o racionamento de bens essenciais, fragilizando ainda mais as já precárias condições de vida. E, para cúmulo, também não havia gasolina. Alguns dos 1250 submarinos alemães em ação na Guerra, os célebres U-BOAT, faziam tiro ao alvo a navios de abastecimento ao longo da costa atlântica, perdendo Portugal, durante todo o conflito, 18 mil toneladas da sua marinha mercante, numa provável pressão de Berlim para aumentar as exportações portuguesas, sobretudo de volfrâmio. A atividade comercial das empresas petrolíferas no país foi severamente afetada pelo afundamento de navios petroleiros e originou uma curiosa campanha da Vacuum Oil Company, antepassada da atual Mobil, que publicitava, pedagogicamente, alternativas ao consumo dos seus próprios produtos. Imagine o leitor, nos nossos dias, a nossa GALP, imbuída de preocupações ambientais, a incentivar o uso da pública Carris ou mesmo as boleias online.

Na realidade, a campanha da Vacuum, em pleno curso de um conflito ainda sem desfecho certo, foi uma brilhante criação publicitária. Sediada na poderosa América, geograficamente incólume aos horrores da guerra, a Vacuum partilhava com a flagelada população portuguesa as restrições decorrentes da guerra. Esta ação de responsabilidade social, como agora se designa, derivava de uma massiva presença na publicidade em jornais e revistas desde os anos 20, e também do seu papel pioneiro como fornecedor de combustíveis e derivados. A companhia chegou a Portugal em 1896 com a designação inicial de Vacuum Oil Company, Inc. Patrocinadora de provas desportivas e responsável pela edição de cartas itinerárias do país e do primeiro Guia do Automobilista Português, instalou por sua conta, entre 1920 e 1928, milhares de sinais de trânsito nas estradas portuguesas e colaborou ativamente na campanha para publicitar a inversão do sentido de marcha, da esquerda para a direita, em 1928.

Mário Costa (1902-1975), litógrafo de formação, talentoso ilustrador ligado ao mundo editorial e à publicidade, desenhou centenas de anúncios para a Vacuum Oil. Os primeiros datam de 1937 e os últimos são do final da década de 50, já para a Mobil. A série aqui apresentada tem a competência oficinal da banda desenhada realista da época e, como referencial, o clássico Eduardo Teixeira Coelho. Afinal, Costa era um prolífico criador de ilustrações e quadradinhos para revistas infantojuvenis como O Senhor Doutor, Pim-Pam-Pum, Tic-Tac, Rim-Tim-Tim, O Mosquito e Faísca. Mário Costa substituiu dois grandes ilustradores ao serviço da Vacuum, Cunha Barros e Emérico Nunes, responsáveis, desde os anos vinte, pelas constantes campanhas publicitárias para combustíveis, lubrificantes e aparelhos domésticos, como fogões e caloríferos, associados ao consumo de petróleo. Se o registo maioritário da publicidade ilustrada por Costa é cartunesco e de linha clara, o negrume destes seis anúncios, com toque de enredo policial, era uma imagem de marca do autor, compensando o menor virtuosismo com uma intensidade dramática, bem oportuna neste tema.

1942 vacuum 3 num automóvel.jpg

1942 vacuum cooperação

1942 vacuum juntaram-se os dois

1942 vacuum um recurso

fevereiro202

Em 1944, com o destino da Segunda Guerra já traçado, a Vacuum atreve-se a adivinhar um póspero regresso à normalidade acrescido dos avanços tecnológicos na área dos combustíveis e lubrificantes, entretanto obtidos pelas duras exigências do conflito, novamente em campanha pela mão de Mário Costa.

vacuum oil 1944

As ilustrações foram restauradas digitalmente

Fontes
http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2014/06/mobil-oil-portuguesa.html
Portugal Século XX –1940-1950, Joaquim Vieira, Círculo de Leitores, 2000
Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, Leonardo de Sá e António Dias de Deus, Edições Época de Ouro, 1999

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Lá vamos cantando e rindo

A inquietante perspetiva de uma Espanha comunista em resultado da Guerra Civil e o fascínio da direita extremista portuguesa pelas ditaduras italiana e alemã forçaram Salazar à criação de organizações paramilitares como a Legião e a Mocidade Portuguesa em 1936. Esta última decidia-se a moldar os infantes portugueses aos valores nacionais e combater o internacionalismo bolchevista. Tratava-se de saturar a cabeça de doutrina e o corpo de exercício, até para evitar os malefícios do onanismo (práticas genésicas, como se dizia na altura). Avesso a extremismos, o ditador controla como pode estas problemáticas organizações, nomeando chefias da sua confiança. O principal doutrinador da MP, e mais tarde seu comissário geral, Marcelo Caetano, viria a ser o delfim e sucessor de Salazar. Em 1937, nascia a Mocidade Portuguesa Feminina, “sentinelas da alma de Portugal”, que enquadraria as suas filiadas no seio do lar e da família, oportuna retaguarda dos valorosos guerreiros da congénere masculina. A farda das MPs era peça fundamental na disciplina coletiva e na encenação de desfiles e paradas. As MPs dividiam-se em Lusitos/Lusitas, Infantes, Vanguardistas e Cadetes/Lusas, em categorias dos 7 aos 25 anos, cada uma com farda própria. A representação gráfica das MPs foi evoluindo ao sabor do seu papel político e social e do grafismo dos ilustradores de várias gerações. Nem o velhinho Alfredo Moraes (na altura, já com 65 anos) escapou à chamada, ilustrando os garbosos mancebos, logo em 1937, para um Livro de Leitura dos Liceus.

Portugal é grande, Livro de Leitura para o 1.º Ciclo dos Liceus, ilustração de Alfredo Moraes, Livraria Popular de Francisco Franco, 1937

Livro de Leitura para a 4.ª Classe do Ensino Primário, ilustração de Fernando Bento, Livraria Avis, Porto, s.d.

La jeunesse Portugaise à L’École, I.ere et II.e année, ilustração de Lino António, Livraria Sá da Costa Editora, 1939

O alistamento nas Mocidades era obrigatório dos 7 aos 14 anos e as suas actividades enquadradas a partir da escola. Naturalmente, os manuais escolares dos anos trinta a cinquenta refletiram esta presença obssessiva da MP, incluindo o diploma do Ensino Primário Elementar. Num curioso livro de Francês de 1939, Lino António ilustra com bonomia petizes orgulhosos das suas fardas por entre páginas carregadas de ideologia estado-novista. Os efémeros cadernos escolares de escrever e contar usaram abertamente a iconografia da MP nas suas capas de papéis baratos geralmente impressas a uma cor e sem menção de autor. Um dos mais curiosos talvez seja o do caderno Lusitos/Lusitas, onde compactas filas de miúdos rigorosamente iguais fazem lembrar um inquietante Mundo Novo ariano. Na literatura para a infância, as MPs assumiam a gesta histórica do país, somando-se à reconquista medieval e à epopeia dos Descobrimentos. No livro História de Portugal para Meninos Preguiçosos de Olavo D’Eça Leal (o menino preguiçoso era o filho do autor, Paulo Guilherme, reprovado em História mas futuro “doutor” em Ilustração e Design), a ilustração final, de Manoel Lapa, é um happy end, com as organizações irmãs, Mocidade e Legião, garantindo o devir português.

Caderno escolar, frente e verso, s.d.

Redacções, 4.ª Classe e Admissão aos Liceus, Livraria Popular de Francisco Franco, s.d.

A este devir vanguardista não foram insensíveis os ilustradores modernistas. Já em 1938, num opúsculo de Silva Tavares, Almada Negreiros desenhava uma juventude heróica e triunfal. Mas o esteticismo modernista cedeu o lugar à juventude belicista da década seguinte, com a escalada da Segunda Guerra Mundial, bem explícita na abundante produção gráfica de Júlio Gil, ele próprio destacado dirigente da organização. O Jornal da MP exemplifica o período de maior extremismo ideológico e doutrinação política. É tempo da pose firme e das baionetas caladas dissipando a treva bolchevista. Em Maio de 1943, temendo a invasão de inimigos ou aliados, os filiados da MP faziam caricatas rondas nos castelos e monumentos nacionais, gritando senhas de reconhecimento. O desfecho do conflito e a reorganização política e social sequente esvaziaram a importância da MP como bastião do regime. Gradualmente perdeu o seu cariz militarista e patriótico acabando na inofensiva organização de tempos livres, ao jeito dos Escuteiros, até à extinção natural em 1974.

Roteiro da Mocidade do Império, Silva Tavares, ilustração de Almada Negreiros, Agência Geral das Colónias, 1938

O canto da Mocidade, texto de Odette de Saint-Maurice, ilustrações de Mário Costa, Empresa Nacional de Publicidade, 1938

História de portugal para meninos preguiçosos, Olavo D’Eça Leal, ilustrações de Manuel Lapa, Livraria Tavares Martins, 1943

Tronco em flor, Joäo Carlos Beckert de Assunção, ilustrações de Júlio Gil, Mocidade Portuguesa, 1944, original, guache sobre papel

Jornal da MP, n.º 40, 11-XI-1944, ilustração de Júlio Gil

O valor moral da Educação Física, Alberto Feliciano Marques Pereira, ilustrações de Álvaro Duarte de Almeida e Eduardo Teixeira Coelho, 1949

Fontes

Mocidade portuguesa I [Masculina] e Mocidade Portuguesa II [Feminina], texto de Manuel A. Ribeiro Rodrigues, ilustração de Carlos Alberto Santos, editora Destarte, 2003.

Portugal Século XX – Crónica em imagens 1930-1940, 1940-1950, Joaquim Vieira, Círculo dos Leitores, 2000

Mocidade Portuguesa, Joaquim Vieira, A Esfera dos Livros, 2008

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