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histórias da ilustração portuguesa

Abílio, o nazareno

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Medalhões de lagosta, frango em “cocotte”, ervilhas à inglesa, cenouras em manteiga, doce, queijo e café e vinhos portugueses constavam no luxuoso menu das refeições servidas nos jets intercontinentais da TAP em meados dos anos sessenta. Apresentadas aos viajantes em folheto, tinham a dobra picotada permitindo colecionar postais destacáveis no formato generoso de 23 x 15 cm. A série, com oito imagens e o título de «Danças Portuguesas», revelava um exuberante best off  dos costumes tradicionais portugueses. Repetida, em formato A4, com os mesmos motivos e sem a função postal, trazia a partitura das músicas tradicionais associadas aos pares dançantes. Nova série, em 1968, dá patrocínio e capa ao programa de espectáculos da Companhia Folclore de Lisboa, em larga digressão pelo Brasil, coproduzida pelo Clube Ginástico Português do Rio de Janeiro e pelo Centro de Turismo de Portugal. Companhia aérea de bandeira, a TAP alinhava assim com a propaganda oficial na exploração do filão regionalista, multiplicando os souvenirs folclóricos até mesmo em pequenas travessas de porcelana..

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Os vistosos bailarinos eram obra de Abílio de Mattos e Silva (Sardoal, 1908-Lisboa, 1985), talentoso cenógrafo e figurinista das artes de palco e também ilustrador editorial, já destacado no Almanaque pelo seu trabalho para a «Campanha da Produção Agrícola» dos anos quarenta, em cartazes e brochuras editados pelo Ministério da Economia do qual Abílio era também funcionário. A paixão de Abílio pelos costumes tradicionais portugueses já vinha de longe, desde os anos trinta, e focou, sobretudo, a comunidade piscatória da Nazaré. A primeira manifestação gráfica que lhe conhecemos, versando a vila, é uma coleção de postais, datados de 1934 a 1936, que andam longe ainda dos garridos figurinos do teatro musicado e muito perto das premissas do desenho modernista e do chiaroscuro da art deco. A série é contemporânea da estreia de Abílio no teatro, curiosamente em cenários para a peça Tá Mar, cujo enredo se passa na vila, em  produção da Empresa Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro para o D. Maria II.

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Abílio não foi o único artista gráfico enamorado pela Nazaré. Raquel Roque Gameiro pintara já a faina  nas areias da praia em série de postais em cor sépia, ao jeito naturalista do pai Alfredo, e Tom, o grande Thomaz de Mello, dera já corpo à obsessão da elite do Estado Novo num portentoso ensaio visual de 1958, justamente chamado Nazaré, livro onde passeia o seu virtuosismo plástico  em diversos modismos gráficos em que prevalece a gramática neorrealista. O fascínio pela Nazaré lança Abílio num cometimento ambicioso que entra claramente no campo da etnografia. Em O Traje da Nazaré, edição tardia de 1970, descreve os variados costumes das suas gentes, e documenta a confecção de roupas e acessórios. Abílio diverge da religiosidade oficial em relação ao tema, e desenha sem heroísmo nem tragédia uma versão benigna de varinas e pescadores, de uma elegância anatómica irreal, palrando em grupos e expondo aos nossos olhos as minudências dos seus trajares como se em palco ou montra estivessem. Referencial no desenho de cenários e figurinos de teatro, ópera, bailado e revista, o traço e as cores vívidas e contrastadas de um Abílio estilista contaminarão crescentemente a produção gráfica em papel. Encontramos o mesmo registo em quatro postais com desenhos datados de 57, e ainda numa variante mais sombria, em capas da Via Portucale, revista da empresa Rádio Marconi.

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24 set 1965

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O Trajo da Nazaré agrega imagens produzidas ao longo de três décadas. Algumas das mais antigas, dos anos quarenta, têm abordagem naturalista, negando o palco e a cintura fina dos tagarelas que recheiam o livro. A mulher que espera sentada na areia, retrato pungente das incertezas do mar, serviu ainda de contraditório remate a um alegre folheto de promoção turística, datado de 1951.

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Abílio, the Nazarene

Lobster medallions, chicken casserole, peas à l’anglaise, buttered carrots, dessert, cheese, coffee and Portuguese wines were the luxury meals that TAP served passengers on their intercontinental jet flights in the mid-1960s. A generous-sized postcard (23X15cm) could be detached from the menu along a perforated fold. It was part of a collection of 8 celebrating ‘Portuguese Dances’ – a joyful best of Portuguese traditions. The score of the music that the couples dance to came in A4 format with the same motifs but not as a postcard. A new series dated 1968 provided both sponsorship and programme cover for Companhia Folclore de Lisboa, which was touring Brazil in a co-production with the Clube Ginástico Português in Rio de Janeiro and the Centro de Turismo de Portugal. Portugal’s flag-carrier airline, TAP, joined the official propaganda in exploiting Portuguese local customs and proliferating folkloric souvenirs, even to the extent of their small porcelain dishes.

The drawings of these eye-catching dancers were by Abílio de Mattos e Silva (Sardoal, 1908-Lisboa, 1985), a talented theatre set and wardrobe designer. He was also an editorial illustrator and Almanaque has already mentioned his posters and brochures in the 1940s for Campanha da Produção Agrícola that were published by the Ministry of Economy, where he was employed. His passion for traditional Portuguese costumes had begun long before in the 1930s, and focused mainly on the fishing folk of Nazaré. His first known graphic work is a series of postcards devoted to this coastal town dating 1934 to 1936. They are a far cry from flashy musical theatre costumes and much closer to the ideas advanced in modernist drawings and art deco chiaroscuro.  The postcards came out at the same time as he began working in theatre: interestingly enough, on the set of the play Tá Mar, whose plot unfolds in Nazaré. It was an Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro production for the Dona Maria II National Theatre in Lisbon.

Abílio was not the only artist to fall in love with Nazaré. Raquel Roque Gameiro painted Nazaré’s distinctive traditional ‘faina’ fishing practices in a group of sepia postcards much in the style of her father, Alfredo. And then Tom, the great Thomaz de Mello, brought to life the obsessions of the Estado Novo dictatorship’s elite in a magnificent visual essay in 1958 in a book called Nazaré, in which his artistic virtuosity is evident in a range of images in which neo-realism prevails. Abílio’s fascination with Nazaré led him to an ambitious undertaking that clearly touches upon ethnography. In O Traje de Nazaré, a book that came out later in 1970, he depicts the various garments worn by the people of Nazaré and also describes how these clothes and accessories are made. Abílio diverges from the sanctimonious official approach towards the subject and draws fishwives and fishermen talking in groups with sympathy that has nothing of the heroic or tragic. In his elegant, unrealistic adaptations, he reveals every detail of their garments as if they were on stage or in a shop-window. As in set and wardrobe design for theatre, opera, dance and music hall, Abílio’s draughtsmanship and vivid contrasting colours as a stylist had a growing influence on his work on paper. We find the same drawing style in four postcards dating to 1957, as well as more toned-down variations on the covers of Via Portucale, the Radio Marconi magazine.

O Traje de Nazaré brings together thirty years’ of drawings. Some of the older ones from the 1940s are more naturalist and avoid theatrical effects or the slimming of waists of the garrulous groups that fill the book. A woman sitting alone on the sand while she waits is a powerful reminder of the uncertainties of life at sea but was, paradoxically, the illustration on the back of a cheerful tourism brochure in 1951.

Fontes / Sources

Abílio, catálogo. Textos de Vítor Pavão dos Santos, Fernando de Azevedo, Maria José Salavisa. Município de Óbidos, 2008.

Abílio – Pintura, Desenho, Cenários, Figurinos, catálogo. Texto de Fernando de Azevedo. Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.

30 Anos de Teatro, catálogo. Texto de Tomaz Ribas. Teatro Nacional de S. Carlos, 1970.

 

 

 

 

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