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histórias da ilustração portuguesa

A Volta ao Mundo

Igreja bizantina em Dafni, Grécia

1939. Em vésperas da Segunda Guerra Mundial, o escritor Ferreira de Castro e Elena Muriel, sua mulher, iniciam uma volta ao Mundo, visitando lugares que as bombas dos aviões haveriam de transfigurar. Ferreira percorre o berço de antigas e contemporâneas civilizações, numa demanda humanista que compara e assimila todas as diferenças culturais. Não foi um cruzeiro preguiçoso por cidades marítimas de agência de viagens mas de uma verdadeira aventura repartida por vinte navios diferentes, sem guias nem hora certa de embarque. O diário de viagem, escrito em quatro anos, foi editado em fascículos colecionáveis a partir de 1944 e apresenta abundante iconografia, entre fotografias e ilustrações. Um trio de peso ilustra o livro: Roberto Nobre em gravuras a duas cores, Júlio Amorim e Jorge Barradas nas tricromias dos extratextos com artefactos e costumes regionais aguarelados. Roberto Nobre (São Brás de Alportel, 1903-1969) talentoso crítico de cinema e um dos maiores ilustradores portugueses do seu tempo, foi cúmplice de Ferreira de Castro em inúmeras aventuras editoriais, de que o Almanaque já fez eco (Glória ao Trabalho). Apesar da opulência gráfica de A Volta ao Mundo, as fotografias a preto e branco não têm qualidade assinalável e são as ilustrações de Nobre a dar carisma ao livro, pontuando estratégicamente as andanças do casal Castro. Um expressivo preto secundado por diluídas cores ou por um sumptuoso dourado conferem uma inquietante personalidade a casarios e templos de bilhete postal. As generosas impressões a ouro, em sobreposição displicente ao preto, acentuam o caráter sobrenatural das realizações humanas sobretudo na arquitetura religiosa. A técnica, gravura em madeira ou linóleo, confere-lhes uma densidade dramática que não depende do rigor do traço mas da modelação de luz escavada na matriz. A visão “noturna” espetacular de Nobre, embora subsidiária dos ditames comerciais dos colecionáveis da época, foi uma alternativa ao academismo da representação da paisagem na ilustração em gravura de madeira a topo do século XIX ou nas aguarelas naturalistas de Roque Gameiro e Alberto Souza. E apresenta semelhança com as paisagens assombradas do seu contemporâneo António-Lino (também no Almanaque em God Save The Queen). A viagem gráfica de Roberto Nobre fica como um dos mais sublimes registos para um tema bastante equívoco na história da ilustração portuguesa.

Around the World

1939.  On the eve of the Second World War, the author Ferreira de Castro and his wife, Elena Muriel, began their journey around the world to visit places that air bombs were soon to transform. They travelled to the cradles of civilisations, ancient and modern, in their humanistic quest to compare and assimilate all cultural differences. This was no lazy cruise to port cities as devised by some travel agency but rather a real adventure that involved twenty different ships and no guides or set departure times. The travel journal was four years in the writing and started to come out in instalments in 1944 with a large quantity of photographs and illustrations. A brilliant threesome was responsible for the illustrations: Roberto Nobre for the two-colour engravings and Júlio Amorim and Jorge Barradas for the three-colour hors-texte plates of regional artefacts and costumes in watercolour. Roberto Nobre (São Brás de Alportel, 1903-1969) was a talented film critic and one of the greatest Portuguese illustrators of all time.  He had already worked closely with Ferreira de Castro on numerous editorial adventures, some of which Alamanque has already written about (Glória ao Trabalho). Although A Volta ao Mundo is graphically lavish, the black and white photographs are not particularly noteworthy and what makes the book enthralling are Nobre’s illustrations as they chart the couple’s wanderings. Expressive black is supported by watery colours or sumptuous gold that give a disturbing quality to his picture-postcard large houses and temples. Generous prints in gold rather imprecisely superimposed on black accentuate the uncanny character of human achievements, especially in religious architecture. Wood or lino printing techniques provide dramatic intensity that doesn’t rely on rigorous drawing lines but on modulated light that comes from the etched lino. Nobre’s ‘night’ vision, although compliant with the then commercial requirements of instalments, was an alternative to the academicism of wood print illustrations of landscapes at the end of the nineteenth century and naturalist watercolours by Roque Gameiro and Alberto Souza. And there are similarities with the haunted landscapes of his contemporary, António Lino (mentioned in Almanaque’s God Save the Queen post). Roberto Nobre’s graphic journey remains one of the most inspiring records for a rather equivocal theme in the history of Portuguese illustration. 

Emborio, Ilha de Santorini, Grécia

Colina de Bizâncio, Istambul, Turquia

Porta de Nanquim, China

Templo de Hirosaki, Japão

Missão São Gabriel, Los Angeles, Estados Unidos

As ilustrações foram restauradas digitalmente  The illustrations were digitally restored

Fontes

A Volta ao Mundo, Empresa Nacional de Publicidade, 1944

Ferreira de Castro – Roberto Nobre, Correspondência 1922-1969, Ricardo António Alves, Editorial Notícias, 1994

http://ferreiradecastro.blogspot.pt/

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Ninho de amor

Uma singela história do escritor Bernardo de Passos é um hino comovedor à família e ao amor incondicional pelas crianças. A árvore e o ninho, publicado postumamente, com primeira edição em 1930, conta a história de um casal de pássaros, do namoro ao casamento, da construção do ninho à sobressaltada alimentação da prole comilona. O pequenino drama, entre o arroubo romântico e a inquietação realista, tem uma testemunha interessada, a árvore hospedeira, verdadeira matriarca no ocaso da vida, que protege e embala o ninho da passarada como uma avó extremosa.

Por esses anos, a ilustração animalista requintava-se a traço fino em realismos poéticos ou cómicos da segunda geração moderna, como no celebrado, e já aqui mostrado, Vasco Lopes de Mendonça. O minimalismo gráfico de Roberto Nobre (São Brás de Alportel, 1903-1969) enriquece a história de Passos com um vigoroso traço modernista, todo olhos, bico e asas. A síntese pictográfica de Nobre revela surpreendente modernidade, acentuada pela impressão a duas cores diretas, castanho-lilás e azul. A economia gráfica e narrativa acentua-se ao longo das 23 ilustrações do livro, num único plano geral fixo onde evolui a vida doméstica da volátil família. Não por acaso, Roberto Nobre foi também estimado teórico e crítico de cinema. O destino de tão frágeis criaturas não dependia apenas dos desígnios da Natureza, ficava também nas mãos do leitor: nos versos finais há um apelo tocante para que as vulneráveis criaturas sejam poupadas à prática ancestral de assalto aos ninhos pela petizada.

A loving nest

Bernardo de Passos wrote a simple story in poignant praise of families and parents’ wholehearted love for their children. A árvore e o ninho [The tree and the nest] was first published posthumously in 1930. It’s about two little birds from the moment they fall in love to when they marry, build a nest and find themselves anxiously feeding their voracious offspring. The story unfolds from the delirium of romantic love to the birds’ more practical concerns under the loving eye of the matriarchal tree that shelters them from the vicissitudes of life and takes care of the nestful like a devoted grandmother.

In those days, animal illustrations were refined fine line drawings imbued with the poetic or comic realism of second generation modernists, as in the well-known work of Vasco Lopes Mendonça, which we have already shown here.  The graphic minimalism of Roberto Nobre (São Brás de Alportel, 1903-1969) enhances Passos’ story with strong modernist lines and everything becomes eyes, beaks and wings. Nobre’s surprisingly modern pictorial synthesis is further accentuated by its two-colour direct printing in purplish-brown and blue. Graphic and narrative economy runs throughout the 23 illustrations from a fixed general angle where this volatile family-life plays out. And this is no accident seeing that Roberto Nobre was also a distinguished film critic and theorist. The fate awaiting these so very fragile creatures does not depend merely on Nature’s plans; it also rests in the reader’s hands. At the end of the book a moving appeal calls for children to spare these defenceless little birds and stop the age-long practice of raiding nests.   


As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored

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Glória ao trabalho

A Epopeia do Trabalho imprimiu-se na Imprensa Belesa, em Lisboa, no ano 26 do século 20, quando a sciência e o progresso iniciavam a libertação da Humanidade. Colofon do livro

A sociedade portuguesa dos anos vinte não evoluía apenas ao ritmo das Jazz-Bands. Outra face da moeda corroía a sociedade portuguesa. A Primeira República não cumpria os ideais da fraternidade, justiça e igualdade, e revolvia-se em crónicas zaragatas parlamentares, sucedendo-se os golpes e os governos. Publicavam-se no jornal anarco-sindicalista A Batalha, em 1925, textos semanais de Ferreira de Castro sobre as profissões de então. Chamava-se a rubrica Epopeia do Trabalho. Lado a lado, sábios e fogueiros, escultores e datilógrafas, escritores e mineiros numa visão epopeica e libertadora do trabalho interclassista, manual e inteletual, acompanhados a tinta da china por Roberto Nobre (São Brás de Alportel, 1903-1969). O conjunto seria publicado em livro no ano seguinte, 1926. O operariado e campesinato neo-realistas, com o seu cortejo de miséria e opressão estavam ainda a década e meia de distância.

Roberto Nobre, de traço imaturo e anatomia tortuosa, inicia aqui um futuro glorioso como ilustrador de jornais e livros. Ao gosto da prosa, as profissões braçais acentuam o combate titânico do Homem contra a Natureza bruta. As profissões inteletuais e de serviços adoçam-se no traço fino e na placidez dos gestos. Três anos seriam suficientes a Nobre para dominar com virtuosismo a gramática art deco nas deliciosas capas das separatas da revista Civilização. A modelação de volumes e a modulação de cenários gráficos através de um traçado paralelo, artifício recorrente para o claro-escuro da gravura em madeira, haveria de atingir o seu apogeu vinte anos depois nas capas da editora Guimarães para as obras de Zola e Balzac e na ilustração de sumptuosos cenários a preto e ouro em obras do mesmo Ferreira de Castro, como A Volta ao Mundo.

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