Livro de Curso, Medicina Veterinária, Coimbra, 1939
Naquele tempo um quilo de fiambre – que vinha dentro de uma lata – custava trinta escudos. Internado no Sanatório de Covões, Tóssan cansava-se facilmente da monótona comida do hospital. Quando os estudantes apareciam para ele os caricaturar, à razão de 30 escudos cada, um moço amigo dizia-lhe: «Tóssan, vêm aí 30 latas de fiambre!». À tradição dos Livros de Curso, inventada na longínqua Queima das Fitas de 1903, aplica-se Tóssan, apurando os narizes dos estudantes das academias de Coimbra e Lisboa a partir de 1938 e, em 1944, tira olhos e acrescenta ângulos agudos nos quartanistas do Curso de Medicina, replicando o acerto dos caricaturistas modernos da década anterior, como Teixeira Cabral. António Fernando dos Santos, Tóssan (Vila Real de Santo António, 1918 – Lisboa, 1991) brilha facilmente nos Livros de Curso onde colabora, praticamente nunca se cruzando com outros habitués profissionais, como Baltazar ou José Vilhena. Centenas de caricaturas traçadas ao longo de duas décadas vão academizando o seu traço, refém das inúmeras cumplicidades que vai tecendo na cidade, bem à vista nos amáveis perfis para as quartanistas de Letras de Coimbra de 1953, suas colegas no TEUC.
Livro de Curso, Ciências, Coimbra, 1944
Livro de Curso, Medicina, Coimbra, 1944
Livro de Curso, Letras, Coimbra, 1953
Livro de Curso, Direito, Coimbra, 1952
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Depois das andanças iniciais pelo Teatro Lethes de Faro, o apego de Tóssan ao palco frutificou em Coimbra, ocupando de 1947 a 1966 as funções de cenógrafo e caracterizador do TEUC, Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. O percurso escolar de Tóssan tinha-se finado pelo Liceu de Faro. A sua fixação em Coimbra abre-lhe as portas da Academia mas sempre longe das salas de aula. Os tempos de boémia estudantil, onde o não-estudante Tóssan encaixava perfeitamente, podem ser recordados no livro O Teatro dos Estudantes de Coimbra no Brasil,uma extensa tournée do TEUC em que as peripécias começaram logo na viagem a bordo do paquete Serpa Pinto, ou na memória (traiçoeira, é certo, trocando uma parede pelo teto), de Augusto Camacho, cantador de fados e serenatas, futuro doutor em medicina desportiva, a propósito da pintura Ceia dos Loucos na República Palácio da Loucura: «Desembrulhados das nossas capas e de copo na mão, parámos à porta da sala de jantar e ali ficámos de olhos abertos, quase não acreditando no que víamos: o Tóssan, empoleirado lá no alto, em cima de um tabuleiro feito de cadeiras, tábuas e caixotes, qual Miguel Ângelo inspirado na sua Capela Sistina, pintava com desaforo e sem preconceitos, o tecto dessa dependência, ou seja, o Ministério dos Bons Usos e Costumes – a Sala de Jantar –. E vejam lá, de pincel na mão saltavam pinceladas a encarnado, amarelo, preto, lilás e azul, salpicando o teto de ideias sublimes traduzidas numa Ceia de Loucos, ou não fosse a república o Palácio da Loucura. E assim ia desenhando, pintando a todo o comprimento e largura as figuras das empregadas que voavam com as travessas enormes em equilíbrio milagroso donde esvoaçavam frangos depenados e de bico aberto e das quais ia caindo o spaghetti feito de massas, desenhando cifrões.»
Auto da Barca do Inferno, cartaz, TEUC, 1951
O Teatro dos Estudantes de Coimbra no Brasil, Santos Simões, TEUC, 1952
Ceia dos Loucos, República Palácio da Loucura, Coimbra, 1952
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Pela sua espantosa vitalidade e exuberância, Tóssan tornou-se uma referência lendária na cidade, cúmplice também das tertúlias dos movimentos literários que frutificavam à volta da Universidade, como o Neo-Realismo, ou no emocionante convívio com os escritores estrangeiros que aportavam a Coimbra, como os brasileiros Agrippino Grieco e José Lins do Rego. A meia dúzia de traços capaz de imortalizar um rosto, seria uma das suas marcas, visível também em posteriores retratos de escritores portugueses, como José Régio, ou em amigos e mestres, como o carismático criador do TEUC Paulo Quintela. O mais célebre de todos retrata seu amigo António Aleixo, traçado logo em 1943, que terá coincidido com a estadia de ambos no Sanatório de Covões e onde também encontrou Manuela, enfermeira e sobrinha do diretor do hospital, companheira e cúmplice de toda a sua vida futura.
Agrippino Grieco, folheto, 1952
José Lins do Rego, folheto, 1951
Paulo Quintela, marcador sobre papel, 1986
José Régio, marcador e grafite sobre papel, sem data
António Aleixo, grafite sobre papel, 1943
Tóssan, Manuela e António Aleixo no Sanatório de Covões, sem data
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Fontes
Tóssan, Festa da Ilustração, Setúbal 2018 / Casa do Design Matosinhos, 2018
Agradecimentos
Fundação António Aleixo (retrato do poeta)
José Pereira Gens
Miguel Gouveia (fotografia d’A Ceia dos Loucos)
Norberto Correia (Livro de Curso Medicina Veterinária 1939)
Rui Sena