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histórias da ilustração portuguesa

O Bug que era bluff

A 1 de fevereiro de 1999, o suplemento Computadores do jornal Público iniciava uma série de artigos ilustrados sobre o bug do milénio, fazendo eco da comunidade informática mundial sobre o Fim do Mundo que se avizinhava. Os artigos da jornalista Rita Hasse Ferreira dissecavam com humor as crendices e pânicos dos nerds americanos, a cavarem abrigos antinucleares no quintal e a açambarcar alimentos enlatados às toneladas. Em Portugal a sonolência tropical não dava para sustos, depois se veria… O humor dos textos pedia sátira desenhada. Era o desafio ideal para o traço corrosivo de André Ruivo (Lisboa, 1977), convidado por José Vítor Malheiros, editor do suplemento. A série continuou pelos primeiros meses do ano 2000, gozando com os milhões torrados em medidas de prevenção inúteis.

Ruivo trazia o seu circo humano, clownesco, já treinado na ilustração e tira cómica politizadas do jornal Combate. As figuras são grotescas, em traço nervoso de lápis e cores planas de Photoshop. Manipulava os ícones e lugares-comuns da cultura popular com extrema eficácia, como numa das ilustrações mais expressivas da série, onde a propósito de férias forçadas nas escolas, o bug encarna o típico boneco de neve. Mantendo colaboração com o Combate, Ruivo tornou-se ilustrador residente do suplemento Computadores até à sua extinção, continuando a parodiar maleitas informáticas, que se vulgarizavam por esses anos. Uma selecção de imagens da série bug foi publicada pela Bedeteca de Lisboa ainda em 2000 no segundo volume da colecção Imagens de Bolso.

Fontes: André Ruivo – Bug, direção da coleção de João Paulo Cotrim, Imagens de Bolso 2, Bedeteca de Lisboa, 2000

Escolas dos EUA farão férias, 06 dezembro 1999

Hackers criam engarrafamento na Net, 14 fevereiro 2000

No dia 31, olhos postos na Austrália, 13 dezembro 1999

Patentes oportunistas, 21 fevereiro 2000

Banco de Portugal satisfeito, 26 junho 1999

Solução amish para o ano 2000, 31 maio 1999

França às escuras, 10 maio 1999

Conselheiro de Clinton pede contenção aos hackers, 20 dezembro 1999

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Off the record

Energias Urbanas Radicais. Assim titulou António Cerveira Pinto uma mostra de 11 ilustradores portugueses realizada na Central Tejo em novembro de 1994. Encomenda do Clube Português de Artes e Ideias, fora da programação normal da sua Bienal de Jovens Criadores da Europa, a Bienal Off tomava o pulso a uma parte substancial da moderna ilustração portuguesa, que interpretava as inquietações da cultura urbana, a desilusão pós-abril, e a emergência dos subúrbios como força regeneradora da cidade. A agressividade dos temas e do registo gráfico, muito evidentes em Silvares, Fonte Santa, Pousada, Amaral e Lázaro, davam o tom e justificavam amplamente o título, afirmando uma geração emergente de artistas gráficos e plásticos, de que Cerveira Pinto era comentarista atento. A extrema densidade ou originalidade dos materiais de registo neste conjunto de artistas era também opção clara, deixando de fora outra parte significativa da ilustração portuguesa, então em voga, inspirada na linha clara da banda desenhada franco-belga.

Uma grande parte das ilustrações da Bienal (Pena, Fonte Santa, Amaral, Leal e Rocha) eram originárias d’ O Independente, confirmando a importância deste jornal na ilustração editorial da década de noventa. Um papel surpreendente, dada a sua orientação política. António Farinha, António Marques, Gonçalo Pena, João Fonte Santa, José Eduardo Rocha, Luís Lázaro, Paulo Leal, Pedro Amaral, Pedro Cavalheiro, Pedro Pousada e Rui Silvares davam corpo à exposição, subtitulada Cinzeiros de Baixa Pressão, e complementada ainda por vídeos de animação de Alice Geirinhas, António Rocha, Isabel Aboim e José Miguel Ribeiro. O Comissariado de Cerveira Pinto teve assessoria de Marta Anjos, João Paulo Feliciano e Jorge Silva. A Off foi ainda pretexto para uma última edição especial do Joe Índio, fanzine em formato A8, editado por Alice Geirinhas e Fonte Santa. Este último assinou também o cartaz da Bienal.

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Sedução

O lugar do espectador de uma ilustração é habitualmente a primeira fila da plateia. Para esta, o nosso olhar está num camarote do 1.º balcão. Faz toda a diferença. Rara ilustração, mesmo no contexto dos virtuosos anos sessenta do século XX, excecional pelo plano picado, pela elegância do traço ou pela sua ausência, pela sobriedade cromática marcando volumes e planos, pela composição simples e, acima de tudo, pelo tempo de espera que a imagem sugere, criando um clima de tensão emocional entre as personagens. É capa de um livro do escritor José Marmelo e Silva, na coleção Latitude da editora Estúdios Cor, publicado em 1960, e ilustrado por Luís Filipe de Abreu (Torres Novas, 1935), um dos nossos maiores artistas gráficos.

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Os bons costumes portugueses

Costumes Portugueses, il. desc., ed. Papelaria V.ª Marques, Lisboa, 1936

Os correios portugueses emitiram o primeiro bilhete postal em 1878 e os primeiros ilustrados em 1894, no V Centenário do Nascimento do Infante D. Henrique e em 1901 há notícia de  uma série com costumes, monumentos e paisagens de Coimbra, editados por Albino Caetano. As duas séries de Alberto Souza, (1880-1961), a 5.ª série de Lisboa e as paisagens da 3.ª, são do princípio do século. Com as suas cores acinzentadas e uma virtuosa impressão litográfica, são um tesouro para colecionadores. Continuando a tradição oitocentista de representação do pitoresco em gravuras e litografias avulsas, as séries de costumes regionais cedo se concertaram com a organização política do território. Lisboa, a grande metrópole, constituiu-se como tema próprio desde muito cedo, como a curiosa colecção editada e desenhada por Angelo N. Pons caricaturando tipos citadinos, em 1904.

Os Ballets Russes de Diaghilev, que se exibiram em Lisboa em 1917 e 18, marcaram profundamente a primeira geração modernista portuguesa. E reavivaram a chama do imaginário popular rural. O programa estético modernista privilegiava o progresso urbano e a classe média mas não resistiu muito tempo à indiferença geral. A mulher da hortaliça* regressava, nos finais de vinte, mais estilizada nas capas da revista Civilização, mais naturalista nas da Ilustração, ambas cumprindo o ideário do nascente Estado Novo: exaltar a identidade lusa e a pureza do mundo rural.

Typos Populares de Lisboa – 5.º Série, il. Alberto Souza, ed. A Editora, 1904

Portugal – Typos das Ruas, il. e ed. Angelo N. Pons, 1904

Províncias de Portugal, il. Alfredo Morais, ed. António Vieira, Lda., Lisboa, s.d.

Costumes Portugueses, il. Alfredo Morais, ed. G&F, Lisboa, 1940

Costumes Portugueses, il. desc., ed. Papelaria V.ª Marques, Lisboa, 1936

Il. Elisa B. Felismino, ed. MCL, Lisboa, s.d.

Il. Cesar Abbott, ed. Centro de Novidades, Porto, 1942

Costumes Portugueses, Série B, il. Alberto Souza, ed. CTT, 1941

Costumes Regionais Portugueses, il. desc., ed. desc., 1939

O bilhete postal de costumes dos anos 20 a 40 resiste ao acerto com o Modernismo esteticizado de Bernardo Marques, Jorge Barradas ou Roberto Nobre, e fica-se pelo naturalismo, muito graças à prolífica carreira de Alberto Souza. A formidável equipa de modernistas portugueses ao serviço da Política do Espírito de António Ferro não teve oportunidade de brilhar no bilhete postal. A exceção é uma notável coleção de 12 postais de Piló (Manuel Piló, Lisboa 1905-1988), na década de trinta e onde a depuração gráfica se aproxima dos cânones construtivistas dos anos 20. Para o Neo-realismo, incluído na terceira geração modernista, coreografar o pitoresco das classes trabalhadoras estava fora do programa, apesar das sugestivas ceifeiras de um Pavia ou de um Cipriano Dourado.

Emilio Freixas (1899-1976), glória da banda desenhada espanhola, revela uma mudança apreciável numa série criada para a editora Ibis, já na década de 60. A ruralidade perde relevância na crescente urbanização do país e consolida-se o turismo de massas: a série inclui várias cenas de touradas para os postais do Ribatejo. Ao chegar aos anos 70, o bilhete postal de costumes ilustrados já não se levava a sério. Eugénio Silva (Barreiro, 1937), parodiava os tipos regionais adoptando o pop delicodoce da época e Zé Penicheiro (Arganil, 1921) ilustrou a Ria de Aveiro e a Figueira da Foz, nos anos de 73 e 74, no contexto da sua auto-denominada Caricatura em Volume. A  fotografia tornou-se totalitária e os postais, em kitsch technicolor, abasteciam hordas de turistas apressados.

Costumes Portugueses, il. Piló, ed. António Vieira, Lisboa, s.d.

Il. Laura Costa, ed. Oliva (máquina de costura), 1957

Il. D. Fuas, ed. desc., s.d.

Il. desc., ed. desc., s.d.

Portugal e Suas Maravilhas, il. João Alberto, ed. MD, Lisboa, s.d.

Costumes de Portugal, il. desc., ed. AVL, Lisboa, s.d.

Portugal em Silhuetas, il. desc., ed. António Vieira, Lda., Lisboa, s.d.

Il. Emilio Freixas, ed. Ibis, s.d.

Trajes Regionais Portugueses, il. Eugénio Silva, ed. Âncora, Lisboa, s.d.

Il. Zé Penicheiro, ed. Comissão Nacional de Turismo, Aveiro, 1973

A ausência de créditos de edição e autoria artística é frequente. As datas das séries aqui representadas referem-se a carimbos dos correios em postais circulados. Podem não coincidir com as datas de publicação inicial.

* Referência à frase de Christiano Cruz, em 1913, contra o academismo naturalista, personificado por Alberto Souza.

Fontes: Ilustradores Portugueses no Bilhete Postal, Artemágica Editores, 2003

O Povo de Lisboa, catálogo, Câmara Municipal de Lisboa, 1979

Os Postais da Primeira República, António Ventura, Tinta da China, 2010

http://postaisilustrados.blogspot.com

http://www.hernanimatos.com


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O Carrocel Mágico

O Livro do Marinho, Lília da Fonseca, Colecção Carrocel 2, 1963

“Assim, ao utilizar a colaboração de crianças na ilustração, estaremos a diligenciar erradicar da opinião pública sediços conceitos acerca da arte infantil e, ao mesmo tempo, a proporcionar às crianças leitoras a contemplação de produções gráficas com as quais se possam sentir perfeita e naturalmente identificadas.”

Excerto do texto Explicação da coleção Carrocel, por Lília da Fonseca e M. Calvet de Magalhães

Com a participação dos alunos de uma escola-modelo de Lisboa, a Escola Técnico Elementar Francisco Arruda, a escritora Lília da Fonseca (Benguela, 1916-Lisboa, 1991) e o arquiteto M. Calvet de Magalhães (Lisboa, 1913-Lisboa, 1974) empreenderam uma interessante aventura editorial no início dos anos 60. Os livrinhos da Colecção Carrocel apresentavam uma visão libertária da literatura para a infância, propondo a ilustração feita por crianças, contra os preconceitos e o artificialismo da ilustração feita por adultos. Se hoje nos parece uma abordagem ingénua, admiramos o seu pioneirismo como programa consistente. À patetice das histórias fantásticas de bruxas e feiticeiras e à proliferação da banda desenhada de origem estrangeira, os autores contrapunham um humanismo alicerçado nas conquistas sociais e científicas da Humanidade. A História real, factos do quotidiano, até mesmo fait divers em notícias de jornal, eram a matéria-prima para os contos da coleção. Sob a direcção de M. Calvet de Magalhães, a experiência dos livros da Carrocel foi replicada na editora Portugália com o livro de Matilde Rosa Araújo O Palhaço Verde, em 1962. A figuração expontânea, não erudita, combinada com a técnica rude da gravura e do linóleo, têm uma beleza intemporal. Os livros ilustrados por crianças para crianças não foram, no entanto, uma invenção da Carrocel. Já tinha acontecido em 1957, na primeira edição do Livro da Tila, da mesma Matilde Rosa Araújo.

O Baptizado da Coelhinha, Maria Amália Vale, Colecção Carrocel 7, 1963

O Grande Acontecimento, Lília da Fonseca, Colecção Carrocel 4, 1962

O Livro do Marinho, Lília da Fonseca, Colecção Carrocel 2, 1963

O Palhaço Verde, Matilde Rosa Araújo, Colecção Os Pequenos Pioneiros, Portugália, 1962

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Pode o Adobe Illustrator sonhar?

A culpa dos alemães, Público, Leituras & Sons, 8 Março 1997

Pioneiro da ilustração digital, Gonçalo Ruivo (Lisboa, 1957), revela-se nos suplementos Leituras e Leituras & Sons do jornal Público a partir de 1992 e durante os oito anos seguintes, utilizando o software Adobe Illustrator. Ruivo utiliza o mesmo registo numa curta passagem em 1994, pelo Dinheiro, caderno de Economia d’ O Independente, mas é nos suplementos literários do Público que se encontram as mais impressivas metáforas para ilustrar temas complexos do ensaísmo e ficção literária, utilizando objectos comuns, geralmente de uso doméstico. A recontextualização destas imagens banais atinge a máxima intensidade na ilustração acima. Vale a pena comparar a extrema humanidade e rigor da imagem com uma breve sinopse do artigo: [David J. Goldhagen, professor de Ciência Política em Harvard, propôs-se rever, ou revolucionar, a interpretação do Holocausto. O seu livro, ‘Os Carrascos Voluntários de Hitler’ reafirma a tese da culpa dos ‘alemães comuns’ no extermínio dos judeus.]

A construção das imagens é genuinamente digital, não existe desenho prévio à execução no computador. Ruivo utiliza as ferramentas do programa para conceber as suas ilustrações. O preto e branco complementados por sofisticados cinzentos foram condição técnica obrigatória para a impressão em jornal, mas também marca de uma elegância formal capaz ampliar a qualidade da metáfora. A atividade simultânea de artista plástico evidencia-se na liberdade poética e no emaranhado de traços e manchas sabiamente organizados. E numa compreensão descontraída do computador como meio de expressão que não teve paralelo no seu tempo.

Um mistério bem guardado, Público, Leituras, 1 Outubro 1994

As guardiãs do silêncio, Público, Leituras, 04 Julho 1998

‘O Último Suspiro do Mouro’. Uma história de amor para contar, Público, Leituras 28 Outubro 1995

Umberto Eco e o ‘fascismo eterno’. O protofascismo, Público, Leituras, 21 Outubro 1995

A Escrita-Psicanálise, Público, Leituras & Sons, 29 Março 1997

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“O fotógrafo não estava lá” … e o ilustrador também não

O fotógrafo não estava lá… Mas o desenho reconstitui...” Assim começava esporádicamente em 1957 e com regularidade semanal a partir de 1961, uma rubrica sobre crimes e acidentes violentos ou bizarros no vespertino Diário Popular. Zaragatas em cafés, disputas conjugais, lobos e hipopótamos à solta, inimizades de vizinhos e a infância da mortandade rodoviária, espelhavam o Portugal rural e moralista dos anos 60. O bric-à-brac enfatizava o pitoresco do acidente, a irracionalidade animal ou a maldade atávica dos crimes de sangue. A rubrica, semanal no suplemento Sábado Popular, oferecia-se claramente como entretenimento para a emergente classe média lisboeta.

Com ilustrações de Victor Ribeiro, e a partir de Maio de 1963, com o traço mais perfeccionista de Carlos Marques, a série não resistiu à nova ordem política, e finou-se em Outubro de 1975. O registo era descritivo e sóbrio, como convinha. O ilustrador compunha a cena tomando o ponto de vista mais espetacular, com a linguagem emprestada da dinâmica narrativa da banda desenhada. Pretendendo representar uma realidade que ninguém viu, a rubrica não deixava de ser uma ficção. E um paradoxo: apesar da neutralidade do desenho, não era possível substituir a fotografia.

Sábado Popular, 4 de Maio de 1957

Sábado Popular, 7 de Novembro de 1964

Sábado Popular, 28 de Março de 1970

Sábado Popular, 27 de Maio de 1972

Sábado Popular, 24 de Junho de 1972

Sábado Popular, 15 de Fevereiro de 1964

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