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histórias da ilustração portuguesa

A Casa dos Motas

01- 1957 s

E tanto assim era que, após a camioneta ter abalado, quem pagava as favas eram os descascadores. — Que diabo, vocês não passam daí! 

A Colecção Orion é um interessante testemunho da ficção portuguesa neorrealista, publicada entre 1954 e 1957. A coleção, de sóbrias capas tipográficas, trazia ilustrações impressas no miolo, criadas por alguns dos mais estimados ilustradores ligados ao movimento, como Manuel Ribeiro de Pavia, com três livros, Rogério Ribeiro e Cipriano Dourado com dois cada, e José Garcês (mais reconhecido pelas suas bandas desenhadas) com um. O livro que aqui nos ocupa, A Casa dos Motas, é um dos mais tardios e tem uma particularidade, única na coleção. 13 dos 14 linóleos que ilustram o livro vêm em extratexto, impressos em papel cartuchinho. O artista, Luís Ferreira da Silva, Filho (Porto, 1928), foi um influente ceramista e desenvolveu assinalável trabalho na empresa Secla. Ainda jovem, teve contato com os artistas Júlio Pomar e Alice Jorge de quem recebeu influência no contexto da estética neorrealista. Foi ilustrador de rara obra, como neste romance  do escritor Manuel Ferreira, onde se conta a saga da família Mota, madeireiros abastados de Monte Real, povoação nas cercanias de Leiria. O enredo retrata o negócio do abate de madeiras, alimentado pelo famoso pinhal, e a infância do transporte motorizado de mercadorias, em reluzentes camionetas da Diamond, Fargo e Ford, que remeteram para a miséria os carreiros e as suas vagarosas juntas de bois.

As gravuras acompanham o texto com notória literalidade mas os recursos estilísticos de Ferreira da Silva são impressionantes. Há realismo anatómico nos corpos e estilizações de cariz alegórico. Há caras fanadas a lembrar a pintura de Júlio Pomar e máscaras grotescas, caricaturais, que nos remetem para Ensor. Há composições bidimensionais metafóricas e outras com planos e discurso narrativo da banda desenhada. Há exaustivos feixes de linhas, cinéticos, de virtuosismo quase impossível na grosseira técnica do linóleo, a compor movimentadas cenas de ação e violentos contrastes de luz e sombra que constroem figuras sem recurso ao traço. O bizarro catálogo de registos gráficos é simétrico do curioso retrato, bastante humano, da modesta classe dominante de Monte Real e das agruras dos seus miseráveis assalariados. A crueza do linóleo adapta-se bem à dialética relação entre exploradores e explorados, mas Ferreira da Silva anda longe da figuração cristalizada do Neorrealismo português que podemos observar, por exemplo, em Manuel Ribeiro de Pavia.

The Motas House

Colecção Orion books came out between 1954 and 1957 and are interesting examples of Portuguese neorealist fiction. Within the collection’s simple typographic covers, there are printed illustrations by some of Portugal’s most respected neorealist illustrators. A Casa dos Motos is unique in that 13 of its 14 linoleum drawings are extra text and printed on cartridge paper. The artist Luís Ferreira da Silva, Filho (Porto, 1928) was a well-known ceramist who had done outstanding work for Secla, a leading ceramics manufacturers. While still a young man, he had known Júlio Pomar and Alice Jorge, who had influenced him with respect to neorealist aesthetics. That he was an exceptionally talented illustrator can be seen in this novel by Manuel Ferreira.  It’s the saga of the Mota family, who are wealthy lumber merchants in Monte Real, a rural community near Leiria. The plot involves the cutting down of trees for timber in the renowned Leiria forest and the early days of motorized vehicles for transporting goods, such as gleaming Diamond, Fargo and Ford trucks that put loggers with their slow oxen out of business.

The drawings follow the story faithfully but Ferreira da Silva’s stylistic approach is impressive: bodies are drawn with anatomical realism and stylized allegorically; weary faces resemble ones in Júlio Pomar’s paintings while the grotesque, caricatural masks are like Ensor’s. There are two-dimensional metaphysical compositions and others with a strip-cartoon quality in their pictorial narrative. There are never-ending clusters of kinetic lines of almost unattainable virtuosity – given the coarseness of linoleum – that create action-filled scenes and violent contrasts of light and shade that form figures without their having to be drawn. The bizarre assortment of graphic styles fits the strange, very human depiction of the modest but dominant class of Monte Real and the miserable lives of their wretched workers. The rawness of linoleum adapts well to the dialectic relationship between exploiters and the exploited, but Ferreira da Silva is a long way away from the stiff figuration of Portuguese neorealist art that we see, for instance, in Manuel Ribeiro de Pavia.

02 - 1957 s

Finalmente, submissa, convidativa, a pomba agacha-se e o pombo, belo e soberbo, propõe-se consumar o acto, de um salto repentino. Doce abrasada expectativa a de Maria Luísa!

03 - 1957 s

Calado deixou-se ficar junto do berço, lutando por se adaptar à ideia de ter novamente que partir, não sabia por quantos dias, deixando a filhinha à sorte de uma doença ruim.

04 - 1957s

Vê-se um friso nas cadeiras de trás, de mães e tias, e primas solteironas. Comentam este par, aquele vestido, aquela maneira escandalosa de dançar. Repetem umas às outras:— Se fosse minha filha!…

05 - 1957s

Machada abaixo, machada acima, os cavacos saltitam e o sulco do pinheiro, afunda-se aos poucos. Os homens suam um suor pastoso e húmido. Tau!-tau!, machada abaixo, machada acima.

06 - 1957s

Ele reparou-lhe na cara suada, vermelha do caminhar e do carrego da criança. Ana limpou-se a um pano e respirou fundo. — Apre!… A vida de gente pobre sempre é muito amargurada, Zé!

07 - 1957s

— Bravo! Você é um valentaço! julguei vir encontrá-lo feito num feixe! E que tal? E que tal? — Vou bem. Podia se pior, sr. Rafael… O patrão sentou-se.

08 - 1957

— Que tempo demoras por lá, Zé? —Aí três ou quatro dias. O patrão telefona para o Alentejo, lá para quinta-feira. — Mais uma data de dias. Há alturas que custa tanto…

09 - 1957s— Eu sei, Franzino, que lhe custa. A mim também. Você foi meu empregado durante quase 15 anos e nunca tive razão de queixa. Acredite que fiz todos os possíveis para evitar isto.
10 - 1957s— Olhem, sabem que mais? É que já não há homens cum eles no sítio!, com licença de quem me ouve.

11 - 1957s

—Apenas queríamos que aceitsse a gente no trabalho, se não morremos todos à fome. Só isto, sr. Mota. Queríamos trabalho e nada mais.

12 - 1957sE à noitinha, Francisca Macha tinha uma ideia irrevogável. Pegou nos garotos e, de caso pensado, abalou estrada fora, logo após o enterro dos Franzinos.

13 - 1957 s

A notícia correu gostosa e desenfreada por todos os cantos de Monte Real. As línguas mais atiçadas bacorejavam que ela tinha ido a Lisboa fazer um desmancho.

colofon s

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