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histórias da ilustração portuguesa

Felício e Felizarda na terra dos Esquimaus

História dentro da história, os bonifrates Felício e Felizarda aventuram-se no Pólo Norte ensinando à petizada noções básicas de História e Geografia. Os bonecos são recurso engenhoso de mãe estremosa para entreter o filho Pedrinho, retido na cama com uma perna partida. E de uma outra mãe, a da moderna literatura infantil portuguesa, Ana de Castro Osório. O livro reflete as convenções da época, traçando um retrato pouco simpático do “outro”, os mal-cheirosos Esquimaus, desfiando pedagógicas aventuras à volta da bizarra fauna polar, inquietantes icebergues e a temerosa caça à baleia. Manual escolar para a 5.ª Classe da Escola Primária, aprovado oficialmente em 1922, teve história acidentada. Uma primeira rejeição d’ As Aventuras de Felício e Felizarda ao Polo Norte e a estadia da autora no Brasil acompanhando o marido diplomata ao serviço da conturbada I.ª República, atrasaram este livro em treze anos. Leal da Câmara, crónico ilustrador dos livros para a infância da autora, não participou neste manual de leitura, que estava destinado a uma das mais notáveis ilustradoras do Modernismo português.

Filha de pais belgas, Mily Possoz (Lisboa, 1888-Lisboa, 1967) foi companheira de percurso da primeira geração modernista. A sua formação artística foi enriquecida com longas estadias no estrangeiro, a começar com uma primeira temporada em Paris a partir de 1905. De regresso a Portugal, em 1909, começa a integrar as exposições colectivas dos modernistas nos salões da Sociedade Nacional de Belas-Artes e a emblemática Exposição dos Cinco Independentes, de 1923. Dela disse Almada Negreiros ser “o melhor desenhador português do meu tempo”. As suas gravuras em ponta seca de meninas, gatos e flores, são ainda hoje transacionadas com sucesso em leilões internacionais. Tão amada como esquecida, Mily Possoz constituiu-se como um paradigma da equívoca “sensibilidade feminina” nas artes plásticas portuguesas da primeira metade do século XX.

Mily haveria de cristalizar um registo mais sofisticado, a partir da sua segunda estadia em Paris nos anos 20, em aguarelas luminosas de cores transparentes sobre esfumados de grafite, inspiradas pela gravura japonesa do seu mestre Tsuguharu Foujita. Desta feição são as suas soberbas ilustrações do Livro da Segunda Classe, de 1944. Em Felício e Felizarda Mily ilustra em traço  simples e perspetivas rebatidas, tal como em duas obras sequentes da autoria de Jane Bensaúde, As Desgraças de uma Família Persa, de 1922 e As Bonecas, de 1923. E em direção oposta à do virtuoso Alfredo Moraes, omnipresente nos livros escolares da época. Dois anos após a edição de O Mundo dos meus bonitos, de Cottinelli Telmo, Mily assegurava nestes três livros um caminho alternativo para a ilustração para a infância em Portugal.

Fontes

A viagem na literatura para a infância. Duas propostas pedagógicas de Ana de Castro Osório. Maria Teresa Nascimento, 2008

Mily Possoz. Dicionário de Fernando Pessoa, Fernando Cabral Martins, Caminho, 2009

As ilustrações foram restauradas digitalmente 

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