A primeira página d’O Primeiro de Janeiro de 25 de dezembro de 1953, jornal matutino do Porto em formato broadsheet, não faz manchete na primeira página com a execução de Beria na União Soviética, a eleição de René Coty como Presidente da França ou a restituição de duas ilhas ao Japão pelos Estados Unidos. Toda a página é ocupada com uma ilustração de Laura Costa (Porto, 1910-1993) alusiva à quadra natalícia, relegando as notícias do dia para o interior do jornal. Na verdade, a colaboração de Laura com o jornal começara já em 1948, substituindo alguns dos seus amigos artistas, como Augusto Gomes e Adalberto Sampaio, na celebração gráfica do Natal e das festas do São João, em junho. Mas nos primeiros cinco anos, o espaço da ilustração tem dimensões modestas, rivalizando com a agenda noticiosa. Durante 30 anos, Laura Costa vai manter esta colaboração nas datas festivas, tornando as primeiras páginas dos dias 25 de dezembro e 24 de junho memoráveis para várias gerações de leitores portuenses.
Em 1974, os ventos da revolução voltam a reduzir o espaço disponível e, em 1978, a fotografia de um presépio de autor desconhecido quebrará a longa série de ilustrações. Laura volta em 1979, estreia o novo formato tablóide do jornal, mas será o canto do cisne para as suas melosas composições infantis que emparelham, tanto no Natal como no São João, com os poemas da escritora e jornalista Martha de Mesquita da Câmara, cuja colaboração tem longevidade simétrica à de Laura. Crianças de ambos os sexos e suas mães, geralmente ataviadas de costumes tradicionais, receita certa para a democracia social que Laura cumprirá em toda a sua obra, são protagonistas de infindáveis variações sobre o estereotipado imaginário natalício. Quanto ao São João, as opções são mais reduzidas, confinadas às celebração de rua.
Em 1968, os adultos saem definitivamente do palco. A ausência do género masculino adulto nas ilustrações é intrigante. Figura cativa em presépio que se preze, São José é totalmente discriminado. Laura só fraqueja na causa do empoderamento feminino num São João de 1952, concedendo a presença de um simpático tocador de guitarra. O santo folião de junho também não é bem tratado e apenas será reabilitado em 1978, quando Laura Costa é substituída pelo Ilustrador António Figueiredo. Apesar da jovialidade com que se relaciona com os homens, Laura Costa revela uma curiosa e obsessiva misandria na sua obra gráfica. Quando não há necessidade de cumprir o roteiro narrativo, Laura eclipsa a presença masculina das suas ilustrações, exaltando o universo infantil e maternal em todas as celebrações sagradas e profanas.
As duas séries de Laura n’O Primeiro de Janeiro são exemplares na evolução de traço e caraterização anatómica das suas ilustrações. Nos primeiros (e últimos) anos as proporções anatómicas em traço caligráfico são veristas, mas no início da década de sessenta a representação dos rostos infantiliza-se. São agora bonecos, num traço paródico que anuncia a representação pop que inundará a literatura e o merchandising comercial para crianças em todo o mundo ocidental até ao final dos anos setenta. A aparente regressão tem uma pertinente ligação com a fase inicial da sua obra impressa, nos anos 30, quando Laura ilustra livros para crianças na Livraria Chardron, da Lello & Irmão, e em vários manuais escolares.
Fontes: adaptação de textos incluídos no catálogo Laura Costa, Jorge Silva, Arranha-céus, 2023
Imagens — Alexandre Alves Costa: Natal 1950, 1954, 1970, 1972, São João 1952, 1977 / Biblioteca Nacional: Natal 1948, São João 1948, 1949 / Biblioteca Municipal do Porto: Natal 1968, 1973
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