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histórias da ilustração portuguesa

Os Bonecos de Tom (5) — O Portugal dos Pequeninos

Faia, Adega Machado, s.d.

Os bonecos em madeira de Tom (Thomaz de Mello, 1906-1990) desempenharam um papel importante na propaganda dos valores do Estado Novo, quer na decoração de habitações particulares quer em feiras internacionais e exposições de artes decorativas. Com o patrocínio do SPN, Tom inicia a coleção em 1939, com uma dezena de figuras onde pontuam o pastor de Trás-os-Montes, a varina, a florista, a lavadeira dos arredores de Lisboa, raparigas da Estremadura e do Minho, uma pastora e uma ceifeira. O sucesso pode medir-se também pela sua extensão a séries dedicadas a marcas e estabelecimentos comerciais, como a SACOR, Loja das Meias, Adega Machado ou os perfumes Nally. Ou a inúmeras réplicas de autoria nem sempre esclarecida. Tom não deixa memória exata sobre a criação dos seus bonecos mas em artigo da revista Renascença, de 1 de janeiro de 1940, o escritor e jornalista Adolfo Simões Müller, com quem Tom já se tinha cruzado na revista infantil O Papagaio, dá notícia do arranque da coleção e anuncia para muito breve a produção de um presépio e de uma Nau Catrineta. Em Wooden figures by Tom, folheto-catálogo posterior mas de data incerta, é apresentada uma série contínua de 36 figuras e, com numeração avulsa, muitas outras, como um par fadista, Luís de Camões, e uma banda filarmónica, numerada de 101 a 110.

Bonecos em madeira, primeira série, c. 1939
Bonecos em madeira, primeira série, c. 1939
Bonecos em madeira, primeira série, c. 1939
Portuguese Wooden Figures, folheto-catálogo, c. 1940
Calendário SACOR, marinheiro, s.d.

Gradualmente, os bonecos em madeira de Tom vão ampliando a sua notoriedade, tornando-se presença assídua nos projetos de decoração do próprio Tom e na difusão do artesanato nacional em feiras e exposições, como a de Chicago, em 1950. Os bonecos em madeira ao torno não são uma invenção de Tom. Para além da influência de bonecos de outras paragens, da União Soviética à Suiça, talentosos decoradores como Fred Kradolfer, Carlos Botelho ou Bernardo Marques criam bonecos, geometricamente simplificados e sem qualquer pintura realista, para a decoração de dioramas e infografias tridimensionais nas exposições patrocinadas por organismos oficiais e empresas privadas ao longo dos anos 30. A componente lúdica dos bonecos de madeira é gradual e está presente de forma mais acentuada, nos bonecos de um outro relevante artista, Piló, cujo dinamismo escultural e proporções anatómicas acentuam o seu papel de «caricatura em volume», expressão usada também para caraterizar as figuras tridimensionais de Zé Penicheiro, que se entretém a retratar a fauna humana do litoral norte. Embora menos ambiciosas e sistemáticas, as abordagens de Piló e Zé Penicheiro têm semelhanças com a de Tom, propondo uma iconografia assente em tipos identitários da cultura e tradição portuguesas.

Exposição do Mundo Português, 1940
Feira Internacional de Chicago, 1950

O jornal Lourenço Marques Guardian, de 6 de agosto de 1949 confirma a popularidade dos bonecos de Tom, apesar dos tipos regionais da primeira série estarem confinados à metrópole: «Quer prendar uma pessoa amiga gastando pouco dinheiro, e não sabe com quê? Compra um boneco “Tom” e oferece. Seja homem, senhora, menina ou criança! O turista vem a Lourenço Marques. Quer levar para a sua terra uma recordação típica de Portugal. Compra um boneco “Tom”. E assim, de maneira pouco dispendiosa, tem um motivo alegre, simples, para se recordar do Portugal hospitaleiro. É a propaganda no estrangeiro. É a atracção turística».

Lourenço Marques Guardian, 6 de agosto de 1949

A segunda série, intitulada «Bonecos Regionais Portugueses», terá começado no início da década de 70, com 25 peças que revisitam muitas das figuras da série inicial. Novamente de pinho, ou já de faia, e sempre esculpidas ao torno, têm a silhueta atualizada em volumes mais redondos e oblongos, influência provável do cinema de animação e dos brinquedos de plástico. Os braços e mãos são agora volumes geométricos puros, cilindros e esferas, que anulam qualquer realismo anatómico e dão ênfase ao corpo central e à cabeça. Tal como na série anterior, Tom monta uma próspera indústria, baseada na sua loja Artécnica, na Rua Capelo, ao Chiado. Na pintura dos bonecos pontuavam colaboradores dedicados, muitas vezes recrutados na vizinha Escola das Belas-Artes. Naturalmente, a figuração dos rostos e as cores aplicadas respeitam um modelo-base proposto por Tom, mas dão espaço à criatividade e virtuosismo dos artífices, garantindo o selo de peças únicas.

Bonecos em madeira, primeira série, pintura
Bonecos Regionais Portugueses, 2.ª série, Maquetes para pintura, c. 1969
Bonecos Regionais Portugueses, 2.ª série
Bonecos Regionais Portugueses, 2.ª série, etiquetas para embalagem, c. 1969
Estremadura, segunda série, c. 1969

Fonte: Tom, Jorge Silva, Arranha-céus, 2020

Agradecimentos: Ana Maria Pessoa, Ana Pessoa Pinharanda, Catarina Portas, Guilherme Parreira, Rita Ferrão, Rui Parreira

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Os Bonecos de Tom (4) — Ai Nazaré

Capa dura do álbum Nazaré, estampada a preto sobre tecido

«A ti, Nazaré, e à tua Virgem; aos teus dias de sol e às tuas noites de Inverno; aos pescadores feitos de pedra viva; ao ondular das saias das tuas mulheres, que lembra os movimentos das marés; aos teus barcos, que são ondas transformadas em preces — ofereço este livro. Perdoa o pouco que te dou, e acredita no muito que te quero.» — Dedicatória de Tom, álbum Nazaré, 1958

 

A elite intelectual e artística aparentada ao Estado Novo tinha particular fascínio pela vila piscatória da Nazaré. António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Martins Barata, Lino António ou Chianca de Garcia, calcorreando-a no verão e no inverno, plasmando-a nos papéis de jornal ou dos teatros, nas telas do cinema ou dos quadros pintados. A crueldade do mar e uma comunidade coesa nos seus trajes e labutas, simbolizava a pureza tão ao gosto de uma propaganda oficial apegada à pureza dos costumes e ao heroísmo do seu povo. Tom está em rota de colisão com esta visão idílica. Sem o lirismo de Ribeiro de Pavia, o ilustrador referencial do Neorrealismo português, apresenta-nos em Nazaré, álbum editado pela Ática em 1958 (com prefácio do cineasta António Lopes Ribeiro), a mesma crueza do álbum anterior, Por Terras de Portugal, de 1948, ambos tributários da estética neorrealista. Ainda em 1957, a um ano da publicação em livro, Tom aplicou uma das composições feitas para Nazaré numa tapeçaria executada na Manufactura das Tapeçarias de Portalegre. Exibida na Feira de Artesanato de Munique de 1958, Nazaré foi distinguida com a Medalha de Ouro do Estado da Bavária.

Nazaré, Manufactura das Tapeçarias de Portalegre, tapeçaria em fio de lã, decoração a negro, 107 x 168 cm, 1957

O humanismo sofrido de Nazaré está bem documentado nas sombrias ilustrações do luto das mulheres pelos desaires da faina. Na sobriedade cromática e no traço áspero, Tom exibe o seu virtuosismo gráfico, em inúmeros registos, longe dos ditames da Política do Espírito de António Ferro, referencial para a segunda geração modernista de artistas gráficos portugueses. Nazaré está longe das varinas gaiatas dos anos 30, de um alegre modernismo em guaches de cores vibrantes, regularmente exibidas nas primeiras exposições de Tom nos anos 20 e 30. E de que o dramaturgo António Pedro (sócio de Tom na Galeria UP) registou saudades: — «[A varina da minha rua] Era uma estilização tão bela, tão sugestiva e simultaneamente tão próxima da realidade de algumas ruas de Lisboa, que todos nós, vendo e admirando a sua varina, ficávamos com pena, imensa pena, de não morarmos na rua de Tom…»

Fontes: Tom, Jorge Silva, editora Arranha-céus, 2020

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Os Bonecos de Tom (3) — O reino do Sol

O astro-rei já se passeou pelo Almanaque a soldo do turismo de praia com a bênção do Estado Novo e o traço expressivo do ilustrador Oskar, mas a sua exploração alimentava facilmente outros desígnios comerciais, à volta de qualquer maquineta ou substância artificiosa que irradiasse calor. Iria acontecer com o nosso Tom numa campanha de publicidade e merchandising ao longo da década de 50 para os Briquetes Pejão, substituto do carvão vegetal. Criados no Studio Tom da Rua Ivens, ao Chiado, estes diabretes incandescentes, cuja humanização andava longe de ser original, pululavam em calendários, folhetos pop-up, cartões de Boas Festas, postais e tudo o mais que a máquina comercial da empresa e o engenho gráfico de Tom se lembrassem. O apogeu comercial dos briquetes do Pejão situa-se entre 1939 e finais da década de 50. A região do Porto era a principal destinatária e a sua utilização abarcava o âmbito doméstico, os transportes e fábricas de cimento.

A situação no Couto Mineiro do Pejão, algures nas terras de Castelo de Paiva, junto ao rio Douro, era tão negra como a cara dos alegres bonecos de Tom. A matéria-prima dos briquetes era extraída a ferros de um carvão de categoria inferior, dado o seu elevado teor em cinzas, e com tecnologias ultrapassadas. E a Empresa Carbonífera do Douro, detentora das minas, ainda sofreu um revés no tribunal quando tentou, por via judicial, monopolizar a designação de «Pejão», em 1961. A pretensão foi negada num acórdão que sublinhava «Que a povoação de Pejão deixou de existir por haver sido destruída pela lavra das minas de que a recorrente é concessionária», naquilo que seria hoje um inconcebível atentado ambiental. O azarado empreendimento arrastou-se ao longo de décadas de exploração ruinosa, já na mão do Estado desde 1974. A sua extinção definitiva, em 1994, encerrou o «ciclo do carvão» em Portugal.

Fontes:

Tom, Jorge Silva, editora Arranha-céus, 2020

Mutações da paisagem do Couto Mineiro do Pejão, António Correia, http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/archport/msg22695.html

Boletim de Propriedade Industrial, n.º 1, 1961 https://servicosonline.inpi.pt/luceneweb/1961_01/01_1961_MNA0000077124.pdf

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Os Bonecos de Tom (2) — Tom vai à praia

Must da burguesia lisboeta que ia a banhos nos Estoris, as magníficas esplanadas sobre o mar do Tamariz ofereciam, nos anos trinta, música, chás dançantes, variedades, teatro guignol, aos sábados uma matinée-cocktail e aos domingos espetáculos variados. E ofereciam também uma coleção de minúsculos livros, de 8,4 x 7,4 cm e 12 páginas de miolo, que dava pelo nome de Biblioteca Tamariz e que, de olho no rebanho familiar, apresentava o Tamariz como «o paraíso das crianças», o que incluía gincanas de bicicleta, provas atléticas destinadas a diferentes idades, distribuição de chocolates Tobler e concursos de construções na areia.

Numa coleção numerada até ao oitavo volume, com a direção e contos do poeta Augusto de Santa-Rita e alguma colaboração da escritora Graciete Branco, os 16 volumes da coleção repartiram-se por três ilustradores: Stuart Carvalhais, Adolfo Castañé e Tom (Thomaz de Mello, Rio de Janeiro, 1906-Paço d’Arcos, 1990), que ilustra sete volumes. Não datados, temos referência segura de Henrique Marques Júnior que, na sua obra Algumas Achegas para uma Bibliografia Infantil, situa a primeira série, numerada de um a oito, em 1931. A segunda série, de oito livros não numerados, data de 1934. A Biblioteca Tamariz foi encomenda da Sociedade de Propaganda da Costa do Sol, filial da SPP – Sociedade de Propaganda de Portugal, apostada no boom turístico da região e devidamente sintonizada com a política do nascente Estado Novo.

O formato mínimo da Biblioteca Tamariz recomendava traço sintético, cores primárias e composição simples que os três artistas em geral e Tom em particular, cumpriram. Contemporânea da imponente Biblioteca dos Pequeninos, da Empresa Nacional de Publicidade, os livrinhos do Tamariz alinham pelo ideário modernista, em histórias de enredo absurdo e vagamente moralizante, e nas tão magníficas como apressadas ilustrações de Tom que, com menos ângulos retos, apresentavam o traço paródico já visto nas suas ilustrações das revistas Ilustração, Magazine Bertrand, na BD Tiroliro do jornal A Voz ou que irá aplicar, a partir de 1935, no infantojuvenil O Papagaio.

Biblioteca Tamariz

Sociedade de Propaganda da Costa do Sol

Nº 1, História de Pêlo-Pardo, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 2, O Criado Chimpanzé, Stuart Carvalhais, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 3, Faz-Tudo-Maluco, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 4, Lição de Papagaio, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 5, Pretinho Serapião, Stuart Carvalhais, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 6, O Passarinho e o Peixe, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 7, O Menino Ambicioso, Stuart Carvalhais, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 8, Maria Palonça, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., O Cãosinho ‘Lys’ e o Papagaio Loiro, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., As Patas Chocas, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., O Barquilheiro e ‘O Graxa’, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., História de 5 Reis, Adolfo Castañé, conto de Graciette Branco

s.n., O Zézinho e o Quim e o Cão, o Gato e o Papagaio, Tom, contos de Graciette Branco e de Augusto de Santa-Rita

s.n., Justo Castigo e Lição do Acaso, Tom, contos de Graciette Branco e de Augusto de Santa-Rita

s.n., Zézinho o Revolucionário, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., As Meninas à Janela e Hotel da Barafunda, Tom, contos de Augusto de Santa-Rita

Fontes:

Texto rescrito a partir de «Tom na praia», Tom, Jorge Silva, editora Arranha-céus, 2020

O Turismo no eixo costeiro Estoril-Cascais (1929-1939): Equipamentos, Eventos e Promoção do Destino, Maria Cristina de Carvalho dos Anjos, https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/8638/1/ULSD65715_td_tese.pdf

O almanaque agradece as informações do investigador Leonardo De Sá

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Os Bonecos de Tom (1) — Ó glória de mandar, ó vã cobiça

«Ó glória de mandar! Ó vã cubiça / Desta vaidade, a quem chamamos fama»

— «De um só  verso vemos emergir o símbolo de um destino, o horror da agonia sobre-humana da guerra, o jogo de interesses daqueles que, sem serem Governo, governam o mundo… E a infindável e caótica multidão de vencidos, que todos somos, anel imponderável de uma cadeia solar, obrigada a cumprir a sua humanidade.» — Natércia Freire, 1972

As ilustrações de 10 Composições gráficas de Thomaz de Mello/Tom/sobre versos de «Os Lusíadas» de Luís de Camões tiveram origem no convite de Natércia Freire para uma única ilustração a propósito do quarto centenário de Os Lusíadas, numa futura exposição que a escritora comissariava: Os Lusíadas que Fomos, os Lusíadas que Somos. Glosando a canónica obra quinhentista, Tom afasta-se da preguiça plástica dos outros artistas convidados e multiplica por dez a encomenda, criando um álbum onde faz um ajuste de contas cruel e desiludido com um mundo orweliano em que o artista já não se revê. Não é difícil enquadrar esta obra na agonia do regime ou nos grafismos de João Abel Manta, que empreendia por essa época uma demanda solitária contra a decadência moral e política do país nas suas ilustrações, cartunes e caricaturas. Tom publicará a obra no ano seguinte, 1973, no formato de 35 x 32 cm e as páginas coladas em banda contínua. Os originais das composições, em grande formato, eram traçados a tinta da china e redes gráficas autocolantes de diferentes densidades. O luxuoso objeto gráfico é o canto do cisne do ilustrador Tom. Doravante, a sua carreira será orientada essencialmente para a gestão da Artécnica, galeria de arte e loja de mobiliário contemporâneo no Chiado e, já na década de 80, para uma chuva de coleções serigráficas em volta das suas amadas cidades de Lisboa, Porto e Bahia.

«Vistes, que com grandíssima ousadia / Foram já cometer o céu supremo»
«Outros, com vozes que o céu feriam / Instrumentos altíssonos tangiam»
«A quem fortuna sempre favorece»
«E ponde na cobiça um freio duro»
«Mais do que tentar pode homem terreno»
«E se mais mundo houvera lá chegara!»
«Na terra tanta guerra e tanto engano»
«Oiçam todos o mal que toca a todos!»
«Que o corpo cristalino deixa ver-se / Que tanto bem não é para esconder-se»
Tinta da china e redes gráficas sobre papel, 35 x 45 cm

O texto foi rescrito a partir do catálogo Tom, dedicado às exposições Os Bonecos de Tom e Tom – Todo o Design Possível, 2020

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O Senhor Ventura

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Bonecos:
José Manoel, o gerente provisório
Sancho Sanches e António Lima, os burlões
Doutor Cantarino e Tia Dores, hóspedes do hotel
Julião Vaquinha e Carlota, dono do Hotel Três Estrelas e sua filha
Lúcio Marmeleiro, o noivo acidentado
O cozinheiro, a datilógrafa e o porteiro
João Sanches, o verdadeiro gerente

O Senhor Ventura é uma pequena comédia de costumes, cujo palco é o lobby do hotel Três Estrelas, algures em Portugal. O Sr. Vaquinha, o proprietário, espera ansiosamente dois homens que não conhece, o novo gerente que contratou para o hotel, e o dedicado noivo da sua filha Carlota. Entretanto, um burlão chega ao hotel e faz-se passar sucessivamente pelo gerente e pelo noivo, aproveitando a miopia da filha do Sr. Vaquinha. Depois dos quiproquós do costume, Sancho Sanches, o simpático burlão, é desmascarado, mas um oportuno telegrama do Brasil fá-lo herdeiro de cinco milhões de escudos de um remoto tio Jacaré e a azougada Carlota renega o legítimo noivo, reclamando o burlão no seu coração e na gerência do hotel. Ou isso, ou uma lâmina Gilette nos pulsos, e o fleumático pai Vaquinha cede em toda a linha para desespero dos legítimos pretendentes, que entraram em cena atrasados. Escrita por Fernando de Pamplona, autor de um monumental dicionário de artistas, História da Pintura e Escultura, a peça era um género muito comum nos magazines e jornais da época, parodiando as contradições da burguesia lisboeta, provinciana e ansiosa de ascenção social.

O “Ensaio Teatral” foi publicado em junho de 1930, no Magazine Bertrand, revista que juntamente com a Civilização e a Ilustração, constituíam a frente possível da mundanidade portuguesa. Oscilando entre a estética modernista e o naturalismo folclórico, o Magazine Bertrand publicou ilustradores modernos como Tagarro, Almada Negreiros, Rodolfo, Carlos Carneiro e Tom. As ilustrações de O Sr. Ventura, a página inteira, limitam-se a apresentar as personagens, sem narração do enredo. A economia gráfica tem toda a pertinência porque a ligeiríssima história vive da caraterização dos vários tipos sociais que Pamplona esboça nos curtos diálogos e descrições. Thomaz de Mello, Tom (1906, Rio de Janeiro-Lisboa, 1990), apurou aqui o traço anguloso e rápido que praticava no final da década e que já aqui vimos em crónica da revista Ilustração (post As Meninas do Tamariz). Ilustrador de sofisticados recursos, Tom retratou as personagens com anatomia displicente, mas elaboradamente geométrica, aproximando-se do registo cómico de um Carlos Botelho e cumprindo o programa dos modernistas no desenho humorístico: o comentário irónico de tipos sociais, em vez do humor bordaliano de cariz político e personalizado.

O Senhor Ventura

O Senhor Ventura is a little comedy of manners set in the lobby of the Três Estrelas Hotel somewhere in Portugal. It opens with Senhor Vaquinho, the owner, anxiously awaiting the arrival of the new manager he has hired for his hotel and also for the devoted betrothed of his daughter Carlota. A small-time con artist arrives and pretends to be the new manager and then Carlota’s future husband by taking advantage of her short-sightedness. Following the usual deceptions and misunderstandings, the charming fraud, Sancho Sanches, is unmasked. But a timely telegram from Brazil announces that he has been left a vast amount of money by a remote Uncle Jacaré. Sharp-witted Carlota breaks off her former engagement, announces her love for the scamp and that he should be the new manager. Stuck between that and putting a Gillette blade to his wrists, the easy-going Vaquinha agrees much to the despair of the rightful claimants, who arrive late. Written by Fernando de Pamplona, the play was a common genre in magazines and newspapers of the time and parodied the inconsistencies of social-climbing, provincial bourgeoisie, usually from Lisbon,

‘Ensaio Teatral’ was published in June 1930 in Magazine Bertrand, which together with Civilização and Ilustração made up Portugal’s worldly magazines. Mixing modernist aesthetics with folkloric naturalism, Magazine Bertrand published modern illustrators such as Tagarro, Almada Negreiros, Rodolfo, Carlos Carneiro and Tom. The full-page illustrations for O Sr. Ventura merely presented the characters without narrating the plot. This graphic economy is entirely pertinent because the flimsy storyline depends on the characterisation of the various social types that Pamplona sketches out in short dialogues and descriptions. Thomaz de Mello, or Tom (1906, Rio de Janeiro – Lisbon, 1990) perfected here the swift angular style that he used towards the end of the decade and which we already noted in an Ilustração chronicle (see As Meninas do Tamariz post). Tom was a sophisticated illustrator who depicted unappealing but geometrically shaped characters much in the droll manner of a Carlos Botelho. He fulfilled the modernist agenda in humorous illustration: ironical commentaries on social types rather than the political and personalised caricatures of a Bordallo Pinheiro.

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As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored
Fontes Sources
Ilustração em Portugal I, Theresa Lobo, IADE Edições, 2009

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As meninas do Tamariz

A Bébé, a João e a Bô, cabelo cortado à garçonette, cigarro fino na boca desdenhosa, ombros e coxas mimando um charleston de negríssimo ritmo, comentavam os seus sucessos e desaires amorosos numa langorosa tarde de Outono, beberricando chá numa esplanada do Tamariz. Comentavam o desfile dos peraltas de modos afetados que evolucionavam à sua frente e partilhavam conselhos e truques para atar ou desatar as cabeças ocas dos rapazes a quem elas nunca tratavam pelo nome próprio mas sim pela marca dos carros que conduziam. Observador atento desta guerra de sexos, o jornalista Castelo de Morais publicou uma deliciosa crónica de costumes na revista Ilustração, naquele longínquo mês de Agosto de 1930. Castelo de Morais remata o texto com a recordação das práticas românticas, provavelmente tão parvas, do Passeio Público de meados do século XIX. Magazine da possível modernidade lisboeta de finais dos anos 20, a Ilustração tinha a colaboração de alguns talentosos ilustradores como Stuart, Emmérico Nunes e Ilberino Santos, numa mistura curiosa entre a decorativa art deco e o regresso ao verismo pictórico dos trajes e costumes regionais portugueses. Entre os modernos destacava-se Tom. Nome artístico de Thomaz de Mello, nascido carioca em 1906, lisboeta a partir de 1926, tornou-se referencial  na banda desenhada, ilustração e publicidade dos anos 20 a 50. Enfileirado na chamada segunda geração modernista, Tom prossegue a rotura com o encardido naturalismo das artes plásticas e gráficas portuguesas. As imagens para as crónicas da Ilustração têm o traço fino e contundente da gramática modernista, mais interessada no comentário social do que na fulanização caricatural dos seguidores de Rafael Bordalo Pinheiro, que haveriam de fazer sentir a sua influência até bem tarde no século XX. O traço de Tom é mais paródico e geometrizante que o de Almada Negreiros, Bernardo Marques e Jorge Barradas, companheiros de geração mas de traço mais orgânico e adoçado. Estes janotas de Tom tratados pelos nomes próprios das suas reluzentes viaturas: o Kissel, o Packard, o Willys… são um último fulgor dos loucos anos 20, da glorificação da máquina, da emancipação feminina e das intermináveis noites dos clubs Maxim e Bristol, que em breve se dissolveriam nas pardacentas águas do Estado Novo.

The Tamariz girls

Bébé, João and Bô – their hair cut short à la garçonette, slim cigarettes between scornful lips and moving their shoulders and hips to a Charleston with a very African beat – were talking about the ups and downs in their love lives one leisurely Autumn afternoon as they sipped tea on the esplanade of the Tamariz beach in Estoril.  They exchanged remarks about the affected jokesters parading in front of them and shared advice about how to tie down or let loose the airheads they never called by name but rather by the make of cars these young men drove. A close observer of this war of the sexes, the journalist Castelo de Morais wrote a delicious piece about customs for the Illustração magazine that long-gone August of 1930. Castelo de Morais ends his column reminiscing about the romantic antics, probably equally silly, that must have gone on in Public Promenades in the mid-nineteenth century. Ilustração was the magazine of the modernity that was achievable in Lisbon at the close of the 1920s.  Talented illustrators such as Stuart, Emmérico Nunes and Ilberino Santos were producing interesting work for it that combined art deco with a return to pictorial realism in their depiction of regional Portuguese costumes and customs. Tom, an outstanding artist among modernists, was the artistic name of Thomaz de Mello, born in Rio de Janeiro in 1906 and a Lisbon resident as from 1926. He became a key figure with his cartoon strips, illustrations and publicity from the 1920s to the 1950s, and as one of the so-called second-generation modernists, Tom continued the break from the grimy naturalism of the Portuguese visual and graphic arts of the time. His work for Ilustração is in the fine, scathing style used by modernists more interested in social commentary than in the exaggerated characterizations of Rafael Bordalo Pinheiro’s followers, who made their influence felt until the late 20th century. Tom’s depictions are more parodic and geometric than those by Almada Negreiros, Bernardo Marques and Jorge Barradas, who belonged to the same generation, but there was a more organic and softer touch to them.  The ‘bright young things’ drawn by Tom and called by the make of their glossy cars –  Kissel, Packard, Willys – are the dying flickering lights of the roaring twenties, the glorification of the machine, women’s emancipation and endless nights at the Maxim and Bristol nightclubs, an epoch soon to end in the turbid waters of Salazar’s New State. 

 

As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored

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O Papagaio do Capitão Tom

O Papagaio do Capitão Tom não dizia palavrões. Era bicho educado e preocupado em dar sólida formação moral às crianças com quem brincava. Era, claro, um papagaio católico. Nasceu a 18 de Abril de 1935 e foi pontualmente semanal durante 14 anos. O Papagaio – revista para miúdos, foi a primeira grande  realização da imprensa infantil católica, publicada pela empresa proprietária do magazine Renascença. Fez parte de uma época dourada das revistas infantis portuguesas que entretiveram e educaram nos anos 30 o terço da população portuguesa abaixo dos 14 anos (15,6% na atualidade). Fundado e dirigido e pelo famoso escritor infanto-juvenil Adolfo Simões Müller, O Papagaio reuniu um excecional conjunto de talentos nacionais. Grandes ilustradores nasceram ou passaram pela revista. José de Lemos, que ocuparia gradualmente o papel de Tom, Ilberino dos Santos, Rudy,  José Viana, Vasco Lopes de Mendonça, Arcindo Madeira, Méco, Júlio Resende (recentemente falecido) e José Ruy. Apesar da preferência pela matéria-prima nacional, O Papagaio teve a honra de publicar pela primeira vez em 1936, fora dos países francófonos, as aventuras de um certo repórter Tintin.

O Capitão Tom era um destemido pirata brasileiro que empreendeu a aventurosa travessia do Atlântico em 1926, e arrasou a capital lusa com uma aclamada exposição de caricaturas em 1928, tornando-se um dos mais fascinantes personagens das artes gráficas portuguesas. Tom, Thomaz de Mello (1906, Rio de Janeiro-Lisboa, 1990), iniciou-se na literatura infantil com o Tiroliro, suplemento infantil de A Voz, também de inspiração católica. No Papagaio foi um verdadeiro faz-tudo, responsável pelo grafismo inicial, ilustrações e histórias aos quadradinhos, com destaque para a série de aventuras do azarado inventor Sabichão em calças pardas. As suas capas para os primeiros números foram uma das faces mais criativas do Modernismo português, com os seus palhaços, crianças e papagaios em composições bidimensionais de cores primárias, fundos planos e cabeçalhos mutantes que acolitavam graficamente a ilustração. Ao número 303, Adolfo Simões Müller abandonou a revista para começar uma nova aventura ao leme de nova revista infantil, o Diabrete. A saída de Müller ditou o lento declínio d’ O Papagaio, que se extinguiu ao número 722, corria o ano de 1949. A miudagem preferia claramente os atraentes quadradinhos das coboiadas d’ O Mosquito.

Captain Tom’s Parrot

Captain Tom’s Parrot never used foul language.  He was a refined bird and concerned about providing a solid moral education to the children he played with. He was a Catholic parrot, of course.  He was born on 18 April 1935 and appeared reliably every week for 14 years. O Papagaio (The Parrot) was a magazine for kids and the first major Catholic children’s publication. It belonged to the golden age of Portuguese children’s magazines that entertained and educated a third of Portugal’s under 14 year olds (15.6% currently). Founded and edited by Adolfo Simões Müller, a famous children’s literature author, O Papagaio brought together an outstanding group of Portuguese illustrators and writers. Although Portuguese material was preferred, O Papagaio had the honour to publish for the first time outside French-speaking countries in 1936 the adventures of a certain reporter called Tintin.

Captain Tom was a daring Brazilian pirate who undertook the adventurous journey across the Atlantic in 1926 and won over the capital of Portugal with his much-acclaimed exhibition of caricatures in 1928. Tom or Thomaz de Mello (Rio de Janeiro, 1906-Lisbon, 1990), who became one of the most fascinating artists in Portuguese graphic arts, began his career in children’s literature with Tiroliro, a supplement for youngsters that came out with another Catholic newspaper, A Voz. He was the Jack-of-all-trades at O Papagaio and responsible for the preliminary graphics, illustrations and comic strip stories. His covers for the first issues belong to the most creative phase in Portuguese Modernism with their clowns, children and parrots in two-dimensional compositions, primary colours, plain backgrounds and ever-changing headers that intermingle with the illustrations. Adolfo Simões Müller left the magazine after No. 303 to start a fresh adventure as the head of O Diabrete, a new children’s magazine.  This led to the slow decline of O Papagaio and it eventually closed with No. 722 in 1949. Children clearly found Western comic strips in rival magazines more appealing.

Fontes Sources

Falando do Ofício, SocTip Editora, 1989

Portugal Século XX – 1930-1940, Joaquim Vieira, Edição do Círculo de Leitores, 1999

Os Comics em Portugal, António Dias de Deus, Cotovia/Bedeteca de Lisboa, 1997

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Em menos de um fósforo

A indústria fosforeira portuguesa foi um monopólio desde 1895, ainda em plena Monarquia. A simplicidade do artefacto casava bem com os brandos costumes portugueses e o Estado Novo entravou por muito tempo a vulgarização dos acendedores e isqueiros com taxas e coimas que só se extinguiram em 1970. As coleções de caixas e carteiras de fósforos tornaram-se nos anos 50 um acréscimo simpático de cultura geral para fumadores, donas de casa à volta do fogão e colecionadores de palmo e meio. Tudo cabia nestas mini-enciclopédias: armas e uniformes militares, bicharada vária, paisagens e monumentos, transportes, craques do futebol. Como aconteceu nas emissões filatélicas, as empresas fosforeiras não tiraram particular partido da mestria gráfica e decorativa das várias gerações modernistas portuguesas.
Com uma curiosa exceção: TOM, ou seja, Thomaz de Mello (1906, Rio de Janeiro-Lisboa, 1990), figura maior da segunda geração modernista e das artes gráficas portuguesas. Na série de 30 carteiras Cachimbos, e nas duas de 10 carteiras Costumes, TOM expressa um genuíno sentimentalismo pelas classes populares que já tinha provado amplamente ao serviço do SNI (Secretariado Nacional de Informação) de António Ferro, e em 1957 com o livro Nazaré. O traço sintético de pincelada grossa e as cores planas adequam-se bem à miniatura. Se a receita parece óbvia, a história gráfica destes suportes mostra-nos que foi mais exceção que regra. TOM desenharia ainda outra série, de seis etiquetas para caixas de fósforos, com o tema Flores e as mesmas qualidades de síntese gráfica. Todas elas produzidas pela Sociedade Nacional de Fósforos, entre 1957 e 1960.

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