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histórias da ilustração portuguesa

Júlio Verne dans le pochoir

28 a galera chancellor

Em meados da década de sessenta, a Livraria Bertrand tinha acumulado um stock avultado das Obras de Júlio Verne, 82 volumes em capa dura e formato de bolso, que não se vendiam facilmente. A solução, ainda aplicada nos nossos dias, passou pela criação de novas sobrecapas para os livros, conferindo-lhes uma embalagem mais atraente, mas que resultou numa salada gráfica ilustrada. Cada livro tem duas gravuras do século XIX no miolo, de remota proveniência francesa, capa dura com uma ilustração compósita de Fernando Bento, feita muitos anos antes e, para embrulhar tudo, as referidas sobrecapas, ilustradas por Luís Filipe de Abreu (Torres Novas, 1935), que o fazem regressar oportunamente ao Almanaque. Não se deixem enganar pela aparência modesta destas ilustrações, a sua reduzida escala e a sobriedade do design geral. Um olhar mais atento revela-nos um tesouro gráfico, aplicado em pochoir, recurso raro na vasta obra de ilustração editorial do artista. O pochoir é na realidade uma estampagem em stencil, processo de impressão artesanal em série, bem conhecida dos artistas gráficos e plásticos portugueses dos anos sessenta. Técnica antiga, desenvolvida no Japão a partir da segunda metade do século XVII para a estampagem de tecidos, a sua popularidade nos séculos XIX e XX foi importada de França. Em Paris, a técnica era profusamente aplicada nos figurinos de moda, no design têxtil e nas artes gráficas, sendo fundamental na divulgação da estética Art Deco.

Após um leve traçado prévio, LFA cortava com estilete o molde em papel fotográfico, de formato 9 x 12 cm, aplicando depois a tinta (sempre guache) sobre cartolina offset. O traço anguloso é consequência direta do corte com lâmina, embora adoçado pelas infiltrações da tinta a partir das máscaras ou na cartolina suporte da tinta. Luís Filipe toma algumas liberdades decorativas no risco de caprichosas fumaradas de barcos e comboios, ou no patchwork do casco de submarinos, mas é nas composições descritivas, sem qualquer metáfora, que o ilustrador brilha, num registo minimal, a lembrar  o alto contraste fotogáfico. O talento anatómico e animalista de LFA gera impecáveis perspetivas ou sobreposição de planos e tolera bem a ausência de expressão nos rostos das figuras, que se apresentam quase sempre em branco ou negro total. As hábeis miniaturas, em originais à escala real (ou quase) da impressão tipográfica nas sobrecapas, revelam pormenores deliciosos, como a cabeça da mulher que se vira para trás, no livro A Agência Thompson & C.ª, ou os panos que cobrem os indígenas de Os Navegadores do Século XVIII, exemplos de um sofisticada capacidade narrativa sustentada numa extrema economia gráfica.

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Capa dura de Fernando Bento, sem data

11 oceano pacífico

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 11, Oceano Pacífico

23 o cataclismo cósmico

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 23, O Cataclismo Histórico

27 na áfrica

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 27, Na África

37 os navegadores do século XVIII

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 37, Os Navegadores do Século XVIII

40 os exploradores do século xix

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 40, Os Exploradores do Século XIX

41 a escola dos robinsons

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 41, A Escola dos Robinsons

55 o caminho da frança

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 55, O Caminho da França

64 a mulher do capitão branican

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 64, A Mulher do Capitão Branican

72 a carteira do repórter

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 72, A Carteira do Repórter

74 o coronel de kermor

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 74, O Coronel de Kermor

77 os náufragos do jonathan sss

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 77, Os Náufragos do Jonathan

81 a agência thompson & c.a

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 81, A Agência Thompson & C.ª (I)

82 a mulher do capitão branican

Júlio Verne — Viagens Maravilhosas N.º 81, A Agência Thompson & C.ª (II)

Perderam-se as máscaras em papel fotográfico e os originais estampados a guache na cartolina, mas temos um pincel, com a bonita idade de sessenta anos, de cabo manualmente facetado e afeiçoado à mão do artista, que Luís Filipe usou para traçar um bom pedaço da fantástica história da ilustração portuguesa.

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Ilustrações restauradas digitalmente. O post teve a colaboração de Luís Filipe Abreu.

Fontes
Luís Filipe de Abreu, Coleção D, n.º 12, Imprensa Nacional, 2016

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Café puro

Aos 25 anos, tinha já o traço suficientemente maduro para operar uma pequena revolução na publicidade comercial dos jornais diários de 1959 e 1960. A convite de Paulo-Guilherme, colega de profissão e de ateliê, Luís Filipe de Abreu (Torres Novas, 1935) ilustrou uma série de anúncios de imprensa, encomenda da agência PIC (Produções Igrejas Caeiro) para a promoção do café português que se cultivava nos então territórios ultramarinos. A propaganda do café inseria-se-se no fomento económico estimulado pelo Estado Novo, contrariando a paupérrima economia das décadas anteriores e estimulando o consumidor ao culto cosmopolita do café, lugar e tempo de socialização e bem-estar, aguçando uma frente de contestação intelectual e social que daria os seus frutos no final da década de sessenta. Luís Filipe de Abreu, designer e ilustrador de fascinantes capas das editoras Bertrand, Estúdios Cor e Ulisseia, de incontáveis selos dos Correios Portugueses e de muitas das notas do Banco de Portugal que antecederam o euro, introduziu nestas publicidades ao café inovações apreciáveis, num tempo em que a ilustração era moeda corrente na publicidade e a figuração humana nos anúncios se regia pelo realismo estático inspirado no traço da banda desenhada clássica ou ao jeito cómico dos bonecos do grande designer francês Savignac. O realismo familiar e social nas ilustrações de Luís Filipe anuncia a transição para o primado da fotografia na publicidade impressa, fruto das crescentes melhorias tecnológicas e da relevância da televisão e do cinema. E é de puro cinema que falamos aqui. Luís Filipe acentua planos picados e contrapicados em realismo gráfico pouco comum nos talentosos mas nem sempre virtuosos ilustradores da época. A sua “câmara” de desenhar circula pelos personagens, envolve-os familiarmente, apresenta-os de costas para o leitor, contrariando o estático e estafado plano frontal que toda a história da ilustração sempre ofereceu. E depois há o generoso branco que envolvia os anúncios e embaraçava os paginadores dos jornais, mais afeitos ao economicista horror ao vazio que grassava nas cinzentas e sujas páginas dos diários daquele tempo. Não ficaram por aqui as aventuras gráficas de Paulo-Guilherme e Luís Filipe na publicidade do café. O formato broadsheet do Diário de Notícias de julho de 1960 permitia outras ousadias como a coluna inteira vertical por entre a caótica mistura de anúncios classificados.

Pure coffee

At the age of 25, he was already using the mature style that caused a small revolution in commercial publicity in daily newspapers in 1959. At the invitation of Paulo-Guilherme, a colleague in the same atelier, Luís Filipe de Abreu (Torres Vedras, 1935) did the illustrations for a number of print advertisements for Produções Igrejas Caeiro, a company that wanted to advertise Portuguese coffee, a product obviously grown in Portugal’s overseas territories. Coffee advertising was in line with the economic development as fostered by the New State regime to offset the extremely poor economy of recent decades and, ironically, the meagre domestic market by encouraging consumers to enjoy the cosmopolitan cult of coffee, its time and place in socialising and leisurely well-being. By so doing, it intensified the intellectuals’ desire for social confrontation, and this was to bear its fruits at the end of the 1960s. Luís Filipe de Abreu was the designer and illustrator of fascinating book covers published by Bertrand, Estúdios Cor and Ullisseia, of numerous Portuguese postage stamps as well as Bank of Portugal banknotes before the euro. He was to introduce remarkable innovations into coffee advertising at a time when illustration was the norm in publicity and human figures in advertisements were ruled by a static realism inspired by classic comic strip cartoons or the comic style of the dolls of that great French artist, Savignac. Family and social realism in Luís Filipe’s illustrations shows the ascendancy of photography in printed publicity as a result of increasingly improved technology and the importance of television and cinema. And we’re talking here of cinema, pure and simple. Luís Filipe intensifies the high angles and low angles in a graphic realism rarely encountered in the skilled but not always virtuoso illustrators of the time. His drawing moves like a camera between his characters, involving us and familiarising us with them; it presents them with their backs to us in contrast to the stale, motionless frontal angles used during the entire history of illustration. And then there were the generous white frames around ads that made paginators so uncomfortable as they were more used to the financial horror of emptiness spreading across the dirty grey pages of newspapers of the time. And that was not all in the graphic adventures of Paulo-Guilherme and Luís Filipe in advertising coffee. The broadsheet format of Diário de Notícias in July 1960 allowed for other daring innovations, such as an entire column rising up in a chaotic assortment of classified ads. 

As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored

Fontes Sources

A partir de entrevista video ao autor

Provas dos anúncios amavelmente cedidas por Carlos Rocha

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Sedução

O lugar do espectador de uma ilustração é habitualmente a primeira fila da plateia. Para esta, o nosso olhar está num camarote do 1.º balcão. Faz toda a diferença. Rara ilustração, mesmo no contexto dos virtuosos anos sessenta do século XX, excecional pelo plano picado, pela elegância do traço ou pela sua ausência, pela sobriedade cromática marcando volumes e planos, pela composição simples e, acima de tudo, pelo tempo de espera que a imagem sugere, criando um clima de tensão emocional entre as personagens. É capa de um livro do escritor José Marmelo e Silva, na coleção Latitude da editora Estúdios Cor, publicado em 1960, e ilustrado por Luís Filipe de Abreu (Torres Novas, 1935), um dos nossos maiores artistas gráficos.

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