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histórias da ilustração portuguesa

A Família Piranga

O pai é uma pança com pernas. Foge ao Fisco, rouba no peso e tem um passado de grossas trafulhices. A mãe, rotunda e analfabeta, nunca chega a acomodar-se às luzes da cidade, embaraçando toda a gente com monumentais gaffes. A sogra, armada de farto bigode e de uma casmurrice irredutível, parasita a família para a eternidade. Há ainda uma tia solteirona, tendencialmente neurótica, e os filhos, uns madraços, estão sempre prontos a esbulhar o património da família e a trilhar maus caminhos. São os Barbosas, espécie infestante de um 5.º andar sem elevador da Rua da Prata, dados à estampa em livro no ano de 1939. A família haveria de assumir em título de edição posterior o epíteto de Piranga (termo de origem brasileira que significa pelintra). Armando Ferreira é o cronista desta burguesia lisboeta ainda a cheirar a couves, marinhando laboriosamente pela escala social, tropeçando em quiproquós de comédia de costumes que seriam o prato forte do cinema português da época. O corpus principal desta crueldade são três livros anteriores, de 1934 a 36, que compõem a série Lisboa Sem Camisa, onde Ferreira glosa a obra Lisboa Em Camisa de 1880, do célebre cronista Gervásio Lobato.

A trilogia está recheada por modestas ilustrações de Botelho, e são as expressivas capas de Francisco Valença (Lisboa, 1882-1959) que aqui nos importam. Valença fotografa à pena estas castiças personagens, retrato ainda assim benévolo quando comparado com a virulência do texto. Epígono de Bordalo, Valença está à vontade na sátira social, escape do humor amestrado sob a pesada mão do Estado Novo. Mas nas capas destes livros, o experiente cartunista requinta o traço prolífico dos jornais humorísticos. Mais caligráfico, ganha afinidade com a segunda geração do Modernismo, embora o registo paródico e bonacheirão se afaste do decorativismo programático de um Jorge Barradas ou de um Bernardo Marques, dois dos mais talentosos modernos dos anos trinta. Valença continua a saga ilustrando outras obras do autor como O Amor de Perdigão, parodiando um título célebre de Camilo, e A Barata Loira. O retrato racista do mundo rural em confronto com a cidade e a tacanhez do bairrismo lisboeta arrancam-nos ainda hoje um largo sorriso, um pouco amarelo pela inquietante atualidade destes tão genuínos tipos portugueses.

Os Barbosas, Editora Guimarães, 1939

Lisboa Sem Camisa I – O Casamento de Fifi Antunes, Editora Guimarães, 1934

Lisboa Sem Camisa II – O Baile dos Bastinhos, Editora Guimarães, 1936

As ilustrações foram restauradas digitalmente

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