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histórias da ilustração portuguesa

Pantagruel

Na curiosa introdução do monumental O Livro de Pantagruel, de 1945, Bertha Rosa Limpo traça a sua desassombrada autobiografia, revelando como acumulou duas carreiras artísticas memoráveis, a primeira de cantora lírica, cuja projeção internacional acabou por ampliar a segunda, a paixão pela cozinha. A partir de apontamentos tomados com solícitos chefs de hotéis de todo o Mundo e das sugestões de um leque alargado de amigas, Bertha, senhora da alta sociedade lisboeta e de uma energia transbordante, abalança-se à edição de um volumoso calhamaço, onde verteu em 1500 receitas todo o saber de prática feito na imensa cozinha da sua mansão na Rua António Serpa, acolitada pelos filhos Maria Manuela Limpo Caetano e Jorge Brum do Canto, cineasta, pescador inveterado e talentoso gourmet que haveria de ter papel importante na revista de caça e pesca Diana, como cronista e diretor artístico. Bertha testava todos os pratos, e numa prosa  escorreita, instruía o uso de eletrodomésticos como o frigorífico e a batedeira, recomendava a utilização de caldos Maggi nas suas sopas e não descurava a apresentação estética dos pratos. O Livro de Pantagruel tornou-se instantaneamente um sucesso editorial e foi referencial para sucessivas gerações de noivas que tinham o livro como certo no seu enxoval.

…meu pai levava-me aos ensaios quando eu tinha boas notas… / … my father would take me to rehearsals when I got good marks…

…travava imediatamente conhecimento com os chefes-cozinheiros… / … I would immediately get to know the chefs…

«Convidar alguém para a nossa casa significa encarregarmo-nos da sua felicidade durante o tempo em que essa pessoa permanecer debaixo do nosso tecto» / “To invite someone to our home is to ensure their happiness during the whole time they are under our roof.” Brillat-Savarin

A biografia e entradas dos capítulos foram abrilhantadas a partir da 11.ª edição de 1952, já com 3.000 receitas, por algumas dezenas de prazenteiras ilustrações de António Serra Alves Mendes, mais conhecido como Méco (Lisboa, 1915-1957), ilustrador constante nas revistas infantis, desenhando deliciosas e anafadas crianças n’O Papagaio, nas capas do suplemento Joaninha e n’O Senhor Doutor. Num registo mais adequado à pobreza do papel e da impressão, Meco traça a pincel e tramas mecânicas uma versão simplista das ilustrações dos primeiros anos, de autoria desconhecida, em registo marcadamente publicitário e meios tons de atribulada impressão. O traço elegante e cómico de Méco faz uma interpretação clássica das personagens desta saga gastronómica. A senhora da casa é uma glamourosa criatura que veste descontraidamente a bata e o avental para deitar mãos à sagrada tarefa da concórdia conjugal. Quando a ação extravasa as paredes da casa, pescadores e camponeses folcloricamente ataviados apresentam os petiscos mais exóticos e cozinheiros de braço peludo e cara borbulhenta dão um ar da sua graça. A representação classista das ilustrações vai-se diluindo ao longo dos anos. Pela 25.ª edição, em 1971, os bonecos de Méco dão lugar a inócuas vinhetas de produtos alimentares e, em 1976, com a 31.ª edição, as vinhetas estilizam-se ao jeito da época e as iguarias merecem honras de fotografias a cores. À pedagogia bastante atual de O Livro de Pantagruel, com as suas receitas sintéticas e claras, e ingredientes simples e saudáveis, somava-se um objetivo essencial nos anos 40: preservar a paz doméstica empaturrando o chefe da família com atrativos pitéus. Bertha deixou-o claro na sua biografia, como uma dívida saldada pelo seu precoce casamento aos 15 anos sem saber nada de tachos e panelas. Pelo estômago se cativa um homem.

Pantagruel

In the interesting introduction to her monumental cookery book O Livro de Pantagruel, which came out in 1945,Bertha Rosa Limpo describes an untroubled life in which she had managed to pursue two remarkable artistic careers: the first as a lyrical singer, which, because she performed internationally, was to foster the second, which she was passionate about: cooking. She made notes of what obliging chefs in hotels around the world told her and of the suggestions of a wide range of friends. Bertha, born into Lisbon’s high society, was a woman of extraordinary drive and set about getting into print a voluminous tome with 1,500 recipes in which she poured all the know-how accumulated in the immense kitchen of her large house with the help of her children, Maria Manuela Limpo Caetano and Jorge Brum de Canto, filmmaker, inveterate fisherman and gifted gourmet. Bertha tried out all the recipes herself and gave clear and intelligible instructions on how to use electrical equipment such as fridges and mixers in the kitchen and Maggi cubes in soups and she was also mindful of the dish’s image. O Livro de Pantagruel became an instant hit and a must for successive generations of brides who were never left without a copy in their trousseau.

The introduction and chapter headings were further enhanced as from the 11th edition in 1952, now with 3,000 recipes, by several pleasing illustrations by António Serra Alves Mendes, better known as Méco (Lisbon, 1915-1957). A regular illustrator of children’s magazines, he did drawings of delightful, plump kids for O Papagaio, and the covers of the Joaninha and O Senhor Doutor supplements. His elegant, humorous style provides a classic depiction of the characters in this gastronomic saga. The lady of the house is a glamorous creature who casually dons an apron to set about the sacred task of maintaining marital bliss. When the action moves beyond the walls of the home, it is fishermen and peasants in folkloric costumes who present rather exotic titbits and hairy-armed, spotty-faced cooks only add to the humour. These typical portrayals were to decrease with the years and in 1971, Méco’s drawings were replaced by bland vignettes of food products and in 1976, tasty dishes got to be photographed in colour. The rather contemporary teaching style of O Livro de Pantagruel with its concise but understandable recipes and simple, healthy ingredients, contributed towards the fundamental goal of the 1940s: to keep peace and quiet at home by feeding the head of the household with delectable dishes. Bertha made this very clear in her autobiographical introduction when she mentions the debt paid by her early marriage at the age of fifteen when she knew nothing about pots and pans. The way to a man’s heart is through his stomach.

 

 

As ilustrações foram restauradas digitalmente The illustrations were digitally restored

Fontes Sources

Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e cartoon em Portugal, Leonardo de Sá e António Dias de Deus, Edições Época de Ouro, 1999

A Deliciosa História da Família Pantagruel, Sara Belo Luís, revista Visão, 5 julho 2012

O Livro de Pantagruel, 17.ª edição, Bertha Rosa Limpo, Editorial O Século, 1955

Filed under: Méco,

3 Responses

  1. Maria João Lopes diz:

    Ainda lá vou pesquisar uma receita ou outra!…Tenho a sorte de ter herdado um exemplar de 1952. Ilustrações deliciosas, com o aroma e o paladar da minha infância!

  2. Pedro Amaral diz:

    o tempo vai passando e nós vamos percebendo graças a este blogue que somos um povo de ilustradores mais ou tanto que de poetas

  3. Tatiana diz:

    Boa tarde. Me chamo Tatiana e trabalho em uma agencia de Marketing na Espanha. Estou interessa em seu blog para produção de um post sobre uma publicidade de TV em Portugal. Se está interessado me responda e te explico a campanha.
    Abraços,
    Taty

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