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histórias da ilustração portuguesa

As fitas do Bernardo

Quatro ilustrações num tosco chiaroscuro ilustram a crónica «Os que não passam de figurantes» subtitulada ainda como «reportagem sentimental». Entre o cínico e o terno, o texto do autor evoca os sonhos e as frustrações da chusma anónima que ciranda no plateau à volta das estrelas. José Gomes Ferreira, redator principal da novel revista Imagem, faz contraponto, logo na entrada do primeiro número, em 10 de maio de 1930, à interminável galeria de retratos das glamourosas divas das fitas americanas e europeias que saturam a capa e o miolo do magazine. As ilustrações, de sabor clownesco, pertencem a Bernardo Marques (Silves, 1899-Lisboa, 1962). 

Sem a acidez cómica de Jorge Barradas ou a morbidez de António Soares, Marques, benévolo cronista das gentes que sobem e descem o Chiado, será desafiado para cronicar graficamente os alvores de uma sedutora indústria que irá alimentar dezenas de revistas especializadas, no fecho dos vintes e ao longo da década seguinte. Ilustrações suas andarão pela Imagem (também na primeira série, de 1928), Kino e Girassol, só para nomear o filão cinéfilo. Com a companhia intermitente dos «bonecos» de Olavo D’Eça Leal, Carlos Botelho, Carlos Rocha e Paulo Ferreira, Bernardo Marques, volta no número 12 e retoma a liderança ilustrada na segunda série da revista, com presença assídua ao longo dos três primeiros anos, em artigos avulsos, colagens fotográficas e rubricas permanentes. Uma delas, «O Jornal de Actualidades», glosando a escrita de um roteiro fílmico, será um parente cinéfilo dos célebres «Ecos da Semana» do comparsa Botelho. Nem o rato Mickey escapará ao lápis de Marques.

Longe ficarão, lá pelos princípios dos vinte, os seus maneirismos gráficos à maneira do alemão Simplicissimus ou da vienense Secession. O traço dominante nos desenhos da Imagem aproxima-se da sua produção dos anos finais de vinte, de linhas angulosas e sombras de traço cruzado, registo rápido mas certeiro para fixar a avidez citadina pelas fitas dos grandes estúdios americanos e europeus. Marques capricha regularmente na cascata de cenas e personagens, género em que é exímio e evita, deliberadamente, a influência cáustica de Grosz que traz da sua peregrinação de 1929 por Berlim. A clientela lisboeta das fitas, burguesa ou popular, será poupada nas páginas da Imagem.

Apesar da incipiente indústria cinematográfica nacional, a imprensa especializada estreara cedo, em 1917, com a Cine Revista. Confirmando a perda de influência dos palcos do teatro, somam-se vagas de revistas e jornais dedicados à sétima arte, chegando ao cúmulo de uma Crónica Cinematográfica de efémera edição diária. Imitando os magazines cosmopolitas e o seu design tipográfico modernista, raras serão as revistas de cinema que, sem abdicar da opulência fotográfica alimentada pelos estúdios de cinema, concederão papel relevante à ilustração editorial, estabelecendo uma complementar relação entre duas artes de artifício visual. Imagem, dirigida pelo faz-tudo Chianca de Garcia e pelo redator principal José Gomes Ferreira, o futuro escritor e poeta, terá justa reputação pela impecável impressão em rotogravura, apurada colaboração escrita, e as suas causas e campanhas em prol do cinema luso, como a criação de um estúdio nacional.

No cauteloso editorial do primeiro número, Imagem vai repartir salomonicamente incentivos pelo mudo e pelo sonoro, mas acabará por tomar partido por este último, numa questão fraturante que faz correr rios de tinta na imprensa cinematográfica da época. Após 5 anos de publicação quinzenal e trimensal, Imagem tem o seu «The End» ao número 124, a 15 de Agosto de 1935. A colaboração de Bernardo Marques vai rareando até se finar na ilustração de um sucesso estrondoso da RKO, um grotesco macacão de 15 metros chamado… King Kong. 

«Cinco cartas que se completam. Os cinemas de província revelados por provincianos», Imagem, n.º 12, 10 de outubro de 1932

«Se Leitão de Barros realizasse  A Varanda dos Rouxinois…», Álvaro Gomes, Imagem, n.º 35, 27 de agosto de 1931

«As Grandes vedetas dos desenhos animados: o rato Mickey, o gato Felix e o coelho Oswaldo», Fernanda, Imagem, n.º 40, 1 de novembro de 1941 

«O sonho de 1932», Álvaro Gomes, Imagem, n.º 46, 1 de janeiro de 1932

«A Imagem-Filme apresenta O Jornal de Actualidades N.º 2», Caçador de Imagens, Imagem, n.º 55, 4 abril 1932

«A Imagem-Filme apresenta O Jornal de Actualidades N.º 8», Imagem, n.º 61, 4 de junho de 1932

«Os cinemas em que não se fala», Imagem n.º 67, 2 de setembro de 1932

«King-kong! Um macaco de 15 metros de altura que enche de pânico a cidade de Nova York!», Imagem, n.º 96, 5 de janeiro de 1934

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Primeira página

25 de dezembro de 1954

A primeira página d’O Primeiro de Janeiro de 25 de dezembro de 1953, jornal matutino do Porto em formato broadsheet, não faz manchete na primeira página com a execução de Beria na União Soviética, a eleição de René Coty como Presidente da França ou a restituição de duas ilhas ao Japão pelos Estados Unidos. Toda a página é ocupada com uma ilustração de Laura Costa (Porto, 1910-1993) alusiva à quadra natalícia, relegando as notícias do dia para o interior do jornal. Na verdade, a colaboração de Laura com o jornal começara já em 1948, substituindo alguns dos seus amigos artistas, como Augusto Gomes e Adalberto Sampaio, na celebração gráfica do Natal e das festas do São João, em junho. Mas nos primeiros cinco anos, o espaço da ilustração tem dimensões modestas, rivalizando com a agenda noticiosa. Durante 30 anos, Laura Costa vai manter esta colaboração nas datas festivas, tornando as primeiras páginas dos dias 25 de dezembro e 24 de junho memoráveis para várias gerações de leitores portuenses.

Em 1974, os ventos da revolução voltam a reduzir o espaço disponível e, em 1978, a fotografia de um presépio de autor desconhecido quebrará a longa série de ilustrações. Laura volta em 1979, estreia o novo formato tablóide do jornal, mas será o canto do cisne para as suas melosas composições infantis que emparelham, tanto no Natal como no São João, com os poemas da escritora e jornalista Martha de Mesquita da Câmara, cuja colaboração tem longevidade simétrica à de Laura. Crianças de ambos os sexos e suas mães, geralmente ataviadas de costumes tradicionais, receita certa para a democracia social que Laura cumprirá em toda a sua obra, são protagonistas de infindáveis variações sobre o estereotipado imaginário natalício. Quanto ao São João, as opções são mais reduzidas, confinadas às celebração de rua. 

Em 1968, os adultos saem definitivamente do palco. A ausência do género masculino adulto nas ilustrações é intrigante. Figura cativa em presépio que se preze, São José é totalmente discriminado. Laura só fraqueja na causa do empoderamento feminino num São João de 1952, concedendo a presença de um simpático tocador de guitarra. O santo folião de junho também não é bem tratado e apenas será reabilitado em 1978, quando Laura Costa é substituída pelo Ilustrador António Figueiredo. Apesar da jovialidade com que se relaciona com os homens, Laura Costa revela uma curiosa e obsessiva misandria na sua obra gráfica. Quando não há necessidade de cumprir o roteiro narrativo, Laura eclipsa a presença masculina das suas ilustrações, exaltando o universo infantil e maternal em todas as celebrações sagradas e profanas.

As duas séries de Laura n’O Primeiro de Janeiro são exemplares na evolução de traço e caraterização anatómica das suas ilustrações. Nos primeiros (e últimos) anos as proporções anatómicas em traço caligráfico são veristas, mas no início da década de sessenta a representação dos rostos infantiliza-se. São agora bonecos, num traço paródico que anuncia a representação pop que inundará a literatura e o merchandising comercial para crianças em todo o mundo ocidental até ao final dos anos setenta. A aparente regressão tem uma pertinente ligação com a fase inicial da sua obra impressa, nos anos 30, quando Laura ilustra livros para crianças na Livraria Chardron, da Lello & Irmão, e em vários manuais escolares.

25 de dezembro de 1948. Primeira imagem de Natal de Laura Costa n’O Primeiro de Janeiro
25 de dezembro de 1950, prova tipográfica
25 de dezembro de 1963
25 de dezembro de 1967
25 de dezembro de 1968
25 de dezembro de 1970
25 de dezembro de 1973
24 de junho de 1948. Primeira ilustração de dedicada ao São João
24 de junho de 1949
24 de junho de 1952
24 de junho de 1965
24 de junho de 1977

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Os anúncios de Bordalo

Psit!!!, 1877

Por amizade, interesse ou patriotismo, Rafael Bordalo Pinheiro (Lisboa, 1846-1905) esbanja algum do seu talento em publicidade comercial na sua vida de jornalista gráfico e criador de jornais e almanaques satíricos. Das relações privilegiadas que manteve com o teatro e os empresários e autores teatrais temos notícias, críticas e comentários às centenas cuja separação entre publicidade paga, entusiasmo ou cumplicidades pessoais não é possível deslindar facilmente. Bordalo não tem qualquer objeção ética em dar guarida nos seus jornais a notícias sobre amigos e parceiros de negócio ou mesmo a si próprio. Uma curiosa primeira página do Psit!!, o seu primeiro jornal satírico criado no Rio de Janeiro, apresenta uma notícia-anúncio onde Bordalo se revela representante no Brasil de uma «acreditada e honrada firma» de enchidos portugueses e do Chocolate Andaluza.

Mas nos seus anúncios a casas comerciais nas páginas d’O Mosquito, O Antonio Maria e Pontos nos ii, podemos também apreciar um desígnio mais nobre, o de alavancar a modernização da indústria e comércio portugueses, exaltando a carolice de empresários que arriscam capital e engenho para nivelar a sociedade portuguesa por padrões importados de paragens mais civilizadas.

O registo gráfico de Bordalo nestas publicidades não se distingue particularmente do seu desenho humorístico, que muitas vezes se encontra na página ao lado. Anúncios mais descritivos como os dos cigarros Scando ou da Camisaria Moderna são claramente publicidade paga, geralmente inserida nas capilhas dos jornais, impressas em papel azul ou verde. Mas não é raro encontrar n’O Antonio Maria (1879-1885 e 1891-1898)  e nos Pontos nos ii (1885-1891) páginas inteiras dedicadas a uma nova máquina agrícola, uma peça no Theatro do Gymnasio ou às célebres e divertidas bolachas de Eduardo Antonio da Costa, um criativo empresário que na sua Fábrica da Pampulha, em Lisboa, produzia sucessivas coleções de biscoitos para o chá burguês com as caras dos notáveis da política e da cultura.

Reportagens publicitárias como a da Cutelaria Polycarpo ou das bolachas Antonio Maria são, afinal, pioneiras de um género de comunicação publicitária hoje em voga, o branded content, cujos conteúdos de texto e imagem são criados pelo periódico e, portanto, exclusivos. Na publicidade do século XIX a ilustração, descritiva, alegórica ou humorística, é relativamente rara. Os anúncios são habitualmente resolvidos nas oficinas gráficas pelos tipógrafos que capricham em composições rebuscadas para ornamentar textos enfadonhos, tributários do texto jornalístico, e muito longe dos parâmetros da publicidade nossa contemporânea. Bordalo é, portanto, exceção à regra, mas sempre num continuum das suas convicções políticas, cívicas e artísticas.  

Almanach do Antonio Maria Para 1882

Antonio Maria, 1881

Antonio Maria, 1881

O Mosquito, 1876

O Mosquito, 1876

O Antonio Maria, 1883
O Antonio Maria, 1893

Fontes: Quase Todo o Bordallo, Isabel Castanheira, Arranha-céus / Câmara Municipal das Caldas da Rainha, 2022

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Os Bonecos de Tom (5) — O Portugal dos Pequeninos

Faia, Adega Machado, s.d.

Os bonecos em madeira de Tom (Thomaz de Mello, 1906-1990) desempenharam um papel importante na propaganda dos valores do Estado Novo, quer na decoração de habitações particulares quer em feiras internacionais e exposições de artes decorativas. Com o patrocínio do SPN, Tom inicia a coleção em 1939, com uma dezena de figuras onde pontuam o pastor de Trás-os-Montes, a varina, a florista, a lavadeira dos arredores de Lisboa, raparigas da Estremadura e do Minho, uma pastora e uma ceifeira. O sucesso pode medir-se também pela sua extensão a séries dedicadas a marcas e estabelecimentos comerciais, como a SACOR, Loja das Meias, Adega Machado ou os perfumes Nally. Ou a inúmeras réplicas de autoria nem sempre esclarecida. Tom não deixa memória exata sobre a criação dos seus bonecos mas em artigo da revista Renascença, de 1 de janeiro de 1940, o escritor e jornalista Adolfo Simões Müller, com quem Tom já se tinha cruzado na revista infantil O Papagaio, dá notícia do arranque da coleção e anuncia para muito breve a produção de um presépio e de uma Nau Catrineta. Em Wooden figures by Tom, folheto-catálogo posterior mas de data incerta, é apresentada uma série contínua de 36 figuras e, com numeração avulsa, muitas outras, como um par fadista, Luís de Camões, e uma banda filarmónica, numerada de 101 a 110.

Bonecos em madeira, primeira série, c. 1939
Bonecos em madeira, primeira série, c. 1939
Bonecos em madeira, primeira série, c. 1939
Portuguese Wooden Figures, folheto-catálogo, c. 1940
Calendário SACOR, marinheiro, s.d.

Gradualmente, os bonecos em madeira de Tom vão ampliando a sua notoriedade, tornando-se presença assídua nos projetos de decoração do próprio Tom e na difusão do artesanato nacional em feiras e exposições, como a de Chicago, em 1950. Os bonecos em madeira ao torno não são uma invenção de Tom. Para além da influência de bonecos de outras paragens, da União Soviética à Suiça, talentosos decoradores como Fred Kradolfer, Carlos Botelho ou Bernardo Marques criam bonecos, geometricamente simplificados e sem qualquer pintura realista, para a decoração de dioramas e infografias tridimensionais nas exposições patrocinadas por organismos oficiais e empresas privadas ao longo dos anos 30. A componente lúdica dos bonecos de madeira é gradual e está presente de forma mais acentuada, nos bonecos de um outro relevante artista, Piló, cujo dinamismo escultural e proporções anatómicas acentuam o seu papel de «caricatura em volume», expressão usada também para caraterizar as figuras tridimensionais de Zé Penicheiro, que se entretém a retratar a fauna humana do litoral norte. Embora menos ambiciosas e sistemáticas, as abordagens de Piló e Zé Penicheiro têm semelhanças com a de Tom, propondo uma iconografia assente em tipos identitários da cultura e tradição portuguesas.

Exposição do Mundo Português, 1940
Feira Internacional de Chicago, 1950

O jornal Lourenço Marques Guardian, de 6 de agosto de 1949 confirma a popularidade dos bonecos de Tom, apesar dos tipos regionais da primeira série estarem confinados à metrópole: «Quer prendar uma pessoa amiga gastando pouco dinheiro, e não sabe com quê? Compra um boneco “Tom” e oferece. Seja homem, senhora, menina ou criança! O turista vem a Lourenço Marques. Quer levar para a sua terra uma recordação típica de Portugal. Compra um boneco “Tom”. E assim, de maneira pouco dispendiosa, tem um motivo alegre, simples, para se recordar do Portugal hospitaleiro. É a propaganda no estrangeiro. É a atracção turística».

Lourenço Marques Guardian, 6 de agosto de 1949

A segunda série, intitulada «Bonecos Regionais Portugueses», terá começado no início da década de 70, com 25 peças que revisitam muitas das figuras da série inicial. Novamente de pinho, ou já de faia, e sempre esculpidas ao torno, têm a silhueta atualizada em volumes mais redondos e oblongos, influência provável do cinema de animação e dos brinquedos de plástico. Os braços e mãos são agora volumes geométricos puros, cilindros e esferas, que anulam qualquer realismo anatómico e dão ênfase ao corpo central e à cabeça. Tal como na série anterior, Tom monta uma próspera indústria, baseada na sua loja Artécnica, na Rua Capelo, ao Chiado. Na pintura dos bonecos pontuavam colaboradores dedicados, muitas vezes recrutados na vizinha Escola das Belas-Artes. Naturalmente, a figuração dos rostos e as cores aplicadas respeitam um modelo-base proposto por Tom, mas dão espaço à criatividade e virtuosismo dos artífices, garantindo o selo de peças únicas.

Bonecos em madeira, primeira série, pintura
Bonecos Regionais Portugueses, 2.ª série, Maquetes para pintura, c. 1969
Bonecos Regionais Portugueses, 2.ª série
Bonecos Regionais Portugueses, 2.ª série, etiquetas para embalagem, c. 1969
Estremadura, segunda série, c. 1969

Fonte: Tom, Jorge Silva, Arranha-céus, 2020

Agradecimentos: Ana Maria Pessoa, Ana Pessoa Pinharanda, Catarina Portas, Guilherme Parreira, Rita Ferrão, Rui Parreira

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Os Bonecos de Tom (4) — Ai Nazaré

Capa dura do álbum Nazaré, estampada a preto sobre tecido

«A ti, Nazaré, e à tua Virgem; aos teus dias de sol e às tuas noites de Inverno; aos pescadores feitos de pedra viva; ao ondular das saias das tuas mulheres, que lembra os movimentos das marés; aos teus barcos, que são ondas transformadas em preces — ofereço este livro. Perdoa o pouco que te dou, e acredita no muito que te quero.» — Dedicatória de Tom, álbum Nazaré, 1958

 

A elite intelectual e artística aparentada ao Estado Novo tinha particular fascínio pela vila piscatória da Nazaré. António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Martins Barata, Lino António ou Chianca de Garcia, calcorreando-a no verão e no inverno, plasmando-a nos papéis de jornal ou dos teatros, nas telas do cinema ou dos quadros pintados. A crueldade do mar e uma comunidade coesa nos seus trajes e labutas, simbolizava a pureza tão ao gosto de uma propaganda oficial apegada à pureza dos costumes e ao heroísmo do seu povo. Tom está em rota de colisão com esta visão idílica. Sem o lirismo de Ribeiro de Pavia, o ilustrador referencial do Neorrealismo português, apresenta-nos em Nazaré, álbum editado pela Ática em 1958 (com prefácio do cineasta António Lopes Ribeiro), a mesma crueza do álbum anterior, Por Terras de Portugal, de 1948, ambos tributários da estética neorrealista. Ainda em 1957, a um ano da publicação em livro, Tom aplicou uma das composições feitas para Nazaré numa tapeçaria executada na Manufactura das Tapeçarias de Portalegre. Exibida na Feira de Artesanato de Munique de 1958, Nazaré foi distinguida com a Medalha de Ouro do Estado da Bavária.

Nazaré, Manufactura das Tapeçarias de Portalegre, tapeçaria em fio de lã, decoração a negro, 107 x 168 cm, 1957

O humanismo sofrido de Nazaré está bem documentado nas sombrias ilustrações do luto das mulheres pelos desaires da faina. Na sobriedade cromática e no traço áspero, Tom exibe o seu virtuosismo gráfico, em inúmeros registos, longe dos ditames da Política do Espírito de António Ferro, referencial para a segunda geração modernista de artistas gráficos portugueses. Nazaré está longe das varinas gaiatas dos anos 30, de um alegre modernismo em guaches de cores vibrantes, regularmente exibidas nas primeiras exposições de Tom nos anos 20 e 30. E de que o dramaturgo António Pedro (sócio de Tom na Galeria UP) registou saudades: — «[A varina da minha rua] Era uma estilização tão bela, tão sugestiva e simultaneamente tão próxima da realidade de algumas ruas de Lisboa, que todos nós, vendo e admirando a sua varina, ficávamos com pena, imensa pena, de não morarmos na rua de Tom…»

Fontes: Tom, Jorge Silva, editora Arranha-céus, 2020

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Vamos dançar o twist?

Ernest Evans trabalhava na Fresh Farm Poultry quando o dono da empresa, Henry Colt e o seu amigo, o compositor Karl Mann, conseguiram que o jovem Evans fizesse uma gravação privada com Dick Clark, apresentador do programa de televisão American Bandstand. Foi nesta sessão de gravação que Evans adotou definitivamente o seu nome artístico quando a esposa de Clark lhe perguntou qual era seu nome e ele respondeu: «Os meus amigos chamam-me Chubby» (gorducho). Como ele tinha acabado de fazer uma imitação de Fats Domino, ela sorriu e perguntou-lhe: «Como damas (checkers)?» A brincadeira de palavras envolvendo o dominó do nome de Fats e outro jogo de tabuleiro gerou gargalhadas instantâneas entre os presentes, e foi adotada como nome a partir daquele momento.

Escrito e composto por Dave Apell e Karl Mann, Let’s Twist Again saíu em single em 1961, interpretado por Chubby, reportando-se ao seu single do ano anterior, Twist, uma cover do original de Hank Ballard & The Midnighters, de 1959. Dick Clark, notara que a dança se tinha tornado popular entre os adolescentes e recomendou à Cameo Records que Chubby, um artista «mais saudável», regravasse a canção. Na edição portuguesa de Let’s Twist Again, da editora Columbia, Chubby é creditado erradamente como o criador do twist mas, de facto, popularizou a nova mania dançante com o tema inicial, cujo sucesso instantâneo o converteria numa vedeta planetária. Em 2008, Let’s Twist Again foi nomeado o maior hit de todos os tempos pela revista Billboard, a partir da análise de todos os singles que estiverem entre os 10 maiores sucessos dos tops entre os anos de 1958 e 2008.

Cartunista autodidata, João da Conceição Martins (Portimão, 1928 – Lisboa, 1981), animou muitas publicações humorísticas, como Riso Mundial, Picapau e O Mundo Ri, foi o principal ilustrador da revista semanal Parada da Paródia, ligada ao programa de rádio Parodiantes de Lisboa, e criou, durante longos anos, cartunes e grafismos para o jornal A Bola. Teve papel assinalável em filmes publicitários de desenhos animados para, por exemplo, o construtor civil J. Pimenta e, após o 25 de Abril, colaborou no jornal O Diário, assinando com um simples Mart. O seu comentário político, colado à esquerda, revelou-se no álbum Mart, das Edições Avante e no seu funeral, em setembro de 1981, o corpo será coberto com a bandeira do partido comunista.

Aos 33 anos, Martins frequenta em part-time a secção de publicidade da empresa Regisconta e assina o design deste single com o nome genérico de Twist, apresentando uma dualidade curiosa: o registo gráfico na capa, sem o contorno habitual, apresenta as figuras em volumes de cor plana e caras de xadrez geométrico, com o tracejado das rugas a denunciar a gramática dos anos cinquenta. Já na contracapa, encontramos o standard de Martins, numa tira cómica que se pretende pedagógica para uma dança cujos passos, apesar de simples, eram uma novidade. Provavelmente com enredo do próprio artista, a sequência narrativa enfileira no comentário social em que Martins era mestre. O twist era uma dança considerada lasciva e a sua execução por criaturas de meia idade em traje formal teria, naturalmente, uma intenção caricatural.

Fontes:

Dicionário dos Autores de Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, Leonardo De Sá e António ias de eus, Edições Época de ouro, 1999

Wikipedia: Hank Ballard, Twist, Chubby Checkers e Let’s Twist Again

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Os Bonecos de Tom (3) — O reino do Sol

O astro-rei já se passeou pelo Almanaque a soldo do turismo de praia com a bênção do Estado Novo e o traço expressivo do ilustrador Oskar, mas a sua exploração alimentava facilmente outros desígnios comerciais, à volta de qualquer maquineta ou substância artificiosa que irradiasse calor. Iria acontecer com o nosso Tom numa campanha de publicidade e merchandising ao longo da década de 50 para os Briquetes Pejão, substituto do carvão vegetal. Criados no Studio Tom da Rua Ivens, ao Chiado, estes diabretes incandescentes, cuja humanização andava longe de ser original, pululavam em calendários, folhetos pop-up, cartões de Boas Festas, postais e tudo o mais que a máquina comercial da empresa e o engenho gráfico de Tom se lembrassem. O apogeu comercial dos briquetes do Pejão situa-se entre 1939 e finais da década de 50. A região do Porto era a principal destinatária e a sua utilização abarcava o âmbito doméstico, os transportes e fábricas de cimento.

A situação no Couto Mineiro do Pejão, algures nas terras de Castelo de Paiva, junto ao rio Douro, era tão negra como a cara dos alegres bonecos de Tom. A matéria-prima dos briquetes era extraída a ferros de um carvão de categoria inferior, dado o seu elevado teor em cinzas, e com tecnologias ultrapassadas. E a Empresa Carbonífera do Douro, detentora das minas, ainda sofreu um revés no tribunal quando tentou, por via judicial, monopolizar a designação de «Pejão», em 1961. A pretensão foi negada num acórdão que sublinhava «Que a povoação de Pejão deixou de existir por haver sido destruída pela lavra das minas de que a recorrente é concessionária», naquilo que seria hoje um inconcebível atentado ambiental. O azarado empreendimento arrastou-se ao longo de décadas de exploração ruinosa, já na mão do Estado desde 1974. A sua extinção definitiva, em 1994, encerrou o «ciclo do carvão» em Portugal.

Fontes:

Tom, Jorge Silva, editora Arranha-céus, 2020

Mutações da paisagem do Couto Mineiro do Pejão, António Correia, http://ml.ci.uc.pt/mhonarchive/archport/msg22695.html

Boletim de Propriedade Industrial, n.º 1, 1961 https://servicosonline.inpi.pt/luceneweb/1961_01/01_1961_MNA0000077124.pdf

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Os Bonecos de Tom (2) — Tom vai à praia

Must da burguesia lisboeta que ia a banhos nos Estoris, as magníficas esplanadas sobre o mar do Tamariz ofereciam, nos anos trinta, música, chás dançantes, variedades, teatro guignol, aos sábados uma matinée-cocktail e aos domingos espetáculos variados. E ofereciam também uma coleção de minúsculos livros, de 8,4 x 7,4 cm e 12 páginas de miolo, que dava pelo nome de Biblioteca Tamariz e que, de olho no rebanho familiar, apresentava o Tamariz como «o paraíso das crianças», o que incluía gincanas de bicicleta, provas atléticas destinadas a diferentes idades, distribuição de chocolates Tobler e concursos de construções na areia.

Numa coleção numerada até ao oitavo volume, com a direção e contos do poeta Augusto de Santa-Rita e alguma colaboração da escritora Graciete Branco, os 16 volumes da coleção repartiram-se por três ilustradores: Stuart Carvalhais, Adolfo Castañé e Tom (Thomaz de Mello, Rio de Janeiro, 1906-Paço d’Arcos, 1990), que ilustra sete volumes. Não datados, temos referência segura de Henrique Marques Júnior que, na sua obra Algumas Achegas para uma Bibliografia Infantil, situa a primeira série, numerada de um a oito, em 1931. A segunda série, de oito livros não numerados, data de 1934. A Biblioteca Tamariz foi encomenda da Sociedade de Propaganda da Costa do Sol, filial da SPP – Sociedade de Propaganda de Portugal, apostada no boom turístico da região e devidamente sintonizada com a política do nascente Estado Novo.

O formato mínimo da Biblioteca Tamariz recomendava traço sintético, cores primárias e composição simples que os três artistas em geral e Tom em particular, cumpriram. Contemporânea da imponente Biblioteca dos Pequeninos, da Empresa Nacional de Publicidade, os livrinhos do Tamariz alinham pelo ideário modernista, em histórias de enredo absurdo e vagamente moralizante, e nas tão magníficas como apressadas ilustrações de Tom que, com menos ângulos retos, apresentavam o traço paródico já visto nas suas ilustrações das revistas Ilustração, Magazine Bertrand, na BD Tiroliro do jornal A Voz ou que irá aplicar, a partir de 1935, no infantojuvenil O Papagaio.

Biblioteca Tamariz

Sociedade de Propaganda da Costa do Sol

Nº 1, História de Pêlo-Pardo, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 2, O Criado Chimpanzé, Stuart Carvalhais, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 3, Faz-Tudo-Maluco, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 4, Lição de Papagaio, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 5, Pretinho Serapião, Stuart Carvalhais, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 6, O Passarinho e o Peixe, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 7, O Menino Ambicioso, Stuart Carvalhais, conto de Augusto de Santa-Rita

Nº 8, Maria Palonça, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., O Cãosinho ‘Lys’ e o Papagaio Loiro, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., As Patas Chocas, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., O Barquilheiro e ‘O Graxa’, Adolfo Castañé, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., História de 5 Reis, Adolfo Castañé, conto de Graciette Branco

s.n., O Zézinho e o Quim e o Cão, o Gato e o Papagaio, Tom, contos de Graciette Branco e de Augusto de Santa-Rita

s.n., Justo Castigo e Lição do Acaso, Tom, contos de Graciette Branco e de Augusto de Santa-Rita

s.n., Zézinho o Revolucionário, Tom, conto de Augusto de Santa-Rita

s.n., As Meninas à Janela e Hotel da Barafunda, Tom, contos de Augusto de Santa-Rita

Fontes:

Texto rescrito a partir de «Tom na praia», Tom, Jorge Silva, editora Arranha-céus, 2020

O Turismo no eixo costeiro Estoril-Cascais (1929-1939): Equipamentos, Eventos e Promoção do Destino, Maria Cristina de Carvalho dos Anjos, https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/8638/1/ULSD65715_td_tese.pdf

O almanaque agradece as informações do investigador Leonardo De Sá

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Os Bonecos de Tom (1) — Ó glória de mandar, ó vã cobiça

«Ó glória de mandar! Ó vã cubiça / Desta vaidade, a quem chamamos fama»

— «De um só  verso vemos emergir o símbolo de um destino, o horror da agonia sobre-humana da guerra, o jogo de interesses daqueles que, sem serem Governo, governam o mundo… E a infindável e caótica multidão de vencidos, que todos somos, anel imponderável de uma cadeia solar, obrigada a cumprir a sua humanidade.» — Natércia Freire, 1972

As ilustrações de 10 Composições gráficas de Thomaz de Mello/Tom/sobre versos de «Os Lusíadas» de Luís de Camões tiveram origem no convite de Natércia Freire para uma única ilustração a propósito do quarto centenário de Os Lusíadas, numa futura exposição que a escritora comissariava: Os Lusíadas que Fomos, os Lusíadas que Somos. Glosando a canónica obra quinhentista, Tom afasta-se da preguiça plástica dos outros artistas convidados e multiplica por dez a encomenda, criando um álbum onde faz um ajuste de contas cruel e desiludido com um mundo orweliano em que o artista já não se revê. Não é difícil enquadrar esta obra na agonia do regime ou nos grafismos de João Abel Manta, que empreendia por essa época uma demanda solitária contra a decadência moral e política do país nas suas ilustrações, cartunes e caricaturas. Tom publicará a obra no ano seguinte, 1973, no formato de 35 x 32 cm e as páginas coladas em banda contínua. Os originais das composições, em grande formato, eram traçados a tinta da china e redes gráficas autocolantes de diferentes densidades. O luxuoso objeto gráfico é o canto do cisne do ilustrador Tom. Doravante, a sua carreira será orientada essencialmente para a gestão da Artécnica, galeria de arte e loja de mobiliário contemporâneo no Chiado e, já na década de 80, para uma chuva de coleções serigráficas em volta das suas amadas cidades de Lisboa, Porto e Bahia.

«Vistes, que com grandíssima ousadia / Foram já cometer o céu supremo»
«Outros, com vozes que o céu feriam / Instrumentos altíssonos tangiam»
«A quem fortuna sempre favorece»
«E ponde na cobiça um freio duro»
«Mais do que tentar pode homem terreno»
«E se mais mundo houvera lá chegara!»
«Na terra tanta guerra e tanto engano»
«Oiçam todos o mal que toca a todos!»
«Que o corpo cristalino deixa ver-se / Que tanto bem não é para esconder-se»
Tinta da china e redes gráficas sobre papel, 35 x 45 cm

O texto foi rescrito a partir do catálogo Tom, dedicado às exposições Os Bonecos de Tom e Tom – Todo o Design Possível, 2020

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O Mata-Borrão

ATRALMICINA

O papel mata-borrão é um papel fabricado sem cola, capaz de absorver tinta líquida. O seu uso está ligado à pena de escrever, ao tinteiro e à caneta de tinta permanente. Em formatos próximos do A5, o mata-borrão, tornou-se rapidamente um barato e eficaz meio de propaganda. Se a face que absorvia a tinta ganhava facilmente um caráter inestético, a outra estava disponível para servir como objeto decorativo na secretária. O papel mata-borrão servia assim de cartão de visita e anúncio descartável, facilmente substituído. À semelhança do bilhete postal ilustrado, as imagens impressas no mata-borrão tinham uma fixação muito particular em fotografias de paisagem e costumes tradicionais, complementadas com o logótipo da marca. A indústria farmacêutica explorou intensamente este veículo de propaganda, com resultados gráficos muito apreciáveis, sobretudo quando precisava de apresentar novos fármacos que, naturalmente, tinham a concorrência aguerrida de outras marcas. A excelência da comunicação gráfica das farmacêuticas nacionais, como o Instituto Pasteur, a Delta e a Atral, devia-se à contratação de artistas gráficos profissionais que deixaram a sua marca em peças simples como estes mata-borrões, que se podem situar, à falta de datação explícita, entre as décadas de cinquenta e sessenta.

José Cambraia (1920-1993), será recordado sobretudo pelas capas e ilustrações que fez para os livros infantojuvenis da Livraria Clássica Editora, entre os anos de 1941 e 1971, onde se destacam os minúsculos «Contos de Encantar», coleção que atingiu os 102 números. Cambraia foi diretor do departamento de desenho da Atral no tempo em que a empresa estava situada num chalet em Benfica. Os Laboratórios Atral nasceram em 1948 a partir de uma modesta farmácia situada no Bairro de Alcântara e foram percursores do fabrico de antibióticos em Portugal. Por entre embalagens e a revista Temas de Medicina, newsletter da empresa, Cambraia ocupava-se da publicidade dos bem sucedidos fármacos da casa. A estratégia comercial da Atral não dispensava o mata-borrão, brinde barato e útil que os comerciais da casa deixavam nas secretárias dos senhores doutores. Cambraia era exímio na combinação dos recursos gráficos, em metáforas figuradas que sinalizavam a ocorrência das maleitas ou a sua cura pela intervenção do fármaco, complementadas por cartelas de texto, elemento decorativo apreciado pelos designers desde a propaganda nacionalista dos anos 30.

Os vagares e as manchas da tinta permanente foram cedendo gradualmente espaço à esferográfica, invenção do húngaro Lázló Biró, em 1938. Biró venderia a patente do invento em 1945 ao francês Marcel Bich, que apresentará em 1949 a marca comercial BIC. Se o simpático mata-borrão é mais um artefacto perdido na aceleração dos nossos tempos, uma poesia em prosa do jornalista e escritor brasileiro Mário Quintana, falecido em 1994, eterniza-o-o na nossa fraca memória: “O mata-borrão absorve tudo e no fim da vida acaba confundindo as coisas por que passou… o mata borrão parece gente!”

FENIBUTOL

KELADIL

COMBISSULFA

Fontes
https://restosdecoleccao.blogspot.com/2015/07/laboratorios-atral.html
https://pt-pt.facebook.com/pages/category/Artist/José-Cambraia-588764174496545/

o Almanak agradece a Paulo Cambraia

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